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Liberdade de ocasião

Há sensações que ganham peso e forma com o tempo. Viajar sob um teto de nuvens tristes ilude-me de forma particular. A liberdade desaparece rapidamente. Faz-me recordar que estou aprisionado num triste calhau perdido no firmamento. Não há nada pior do que sentir ser-se prisioneiro, quer seja da vida, do tempo ou do universo.
O peso do céu adensava-se a cada minuto ameaçando chuva e tristeza. Não fui longe, temendo a ameaça que se avizinhava. No regresso olhei para algumas figuras que ondulavam sem destino. Outras pairavam nas bermas com olhares perdidos sobre si próprias. Vi uma mulher nova destroçada pela vida que não teve. Perdida e esquecida de si mesmo. O meu olhar acompanhou-a por brevíssimos segundos. Foram suficientes para saber que não se interessa pelo futuro, pela saúde, pela harmonia e nem por qualquer fantasia. Talvez desejasse acalmar a fúria da privação e o incómodo de não ser ainda horas de se libertar para o mundo em que não não há nada, nem razão, nem coração, nem esperança, apenas a mais cinzenta e analgésica ilusão. Uma prisioneira da vida que ainda não conseguiu libertar-se do mundo.
Noutro local, sentado num muro, sob frondosas árvores, um homem de pele queimada e barba descuidada fixava o seu olhar para o horizonte onde a serra se vestia de nuvens escuras. Não sei se a via, talvez estivesse a recordá-la com o requintado recorte, o intenso calor e o brilho da cor de outros tempos em que a saudade de cuidados e os amores de menino lhe batiam de vez em quando à porta. Olhar de alguém preso a um passado que nunca lhe prometeu nada, nem vida e nem amor, apenas uns momentos tristes numa tarde de domingo, cinza e negra como a sua alma prisioneira sem destino.
Através da janela vi que a chuva tinha iniciado o seu bailado. Muitos pardais, que, entretanto, nasceram e viveram sem a conhecer, devem ter ficado espantados com semelhante fenómeno. Juntaram-se em cima de uma velha antena. Não tardou e ficou cheia de passarada. Pensei, não devem saber o que fazer. Mais um, outro, e ainda outro. Parecia um comício da "pardalada". Prisioneiros da chuva de verão. Demoraram um pouco a aprender. Depois, cada um foi à sua vida.
Liberdade é a razão da sua vida, nem que seja de ocasião.

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