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Rocha



Recordo, quando ia para a faculdade, ao subir a rua Padre António Lopes Vieira, ver numa casa, que resistiu à fúria da renovação da velha alta, uma placa a indicar a existência de um ateliê de um artista plástico. Fixei o seu nome. Memória é coisa que nunca me faltou, e não altura muito menos. Depois, com o tempo, fui ouvindo e até vendo um ou outro quadro. 
Os artistas foram sempre um motivo febril da minha atenção. Não há nada que consiga baixar a temperatura que, por vezes, chega a causar as mais estranhas alucinações. Algo que só a arte consegue. Olhava para o nome estampado na placa e pensava como seria agradável um dia ter um quadro do artista. Fiquei pelo desejo que nunca esqueci. É difícil esquecer o que se pretende numa vida cheia de ilusões que se desfazem a todo o momento em pó. 
Ao fim de muitos anos, mesmo depois de ter reparado que a placa tinha desaparecido, o que me causou alguma apreensão, fui confrontado com uma oferta especial, uma aguarela do autor. Nunca disse nada sobre esta história. Não há nada mais agradável do que possuir algo que sempre se desejou. Acontece-me com alguma frequência. Tarda, mas chega, até agora pelo menos. Penso que é a mais bela das ofertas que o destino me pode oferecer. Atrás de uma obra veio outra, e outra, e outra. De repente acabei por ficar na posse de vários quadros, qual deles o mais belo e inspirador. Talvez seja a forma de o destino me compensar pelo longo tempo de espera. Estão lado a lado num encanto sedutor. Agora tenho mais um, diferente do habitual, telúrico, cheio de alma, em que os elementos do planeta estão representados com uma força e subtileza difíceis de igualar. Olhando para ele falta o elemento vida, que aparece na alma de quem o vê. Uma boa obra é mesmo assim, representa o que se quer deixando para o observador o complemento de quem a vê. Só assim é que a obra está concluída. A natureza e a criatividade do autor de um lado, na parede branca do corredor, e o olhar fixo do espetador que, na sua frente, acaba por ser o objeto central da obra. A rocha delineia-se com fragor estético testemunhando milhões de anos de evolução. É a força permanente da vida que perdura no movimento irreverente do ar e no sentimento da água que se transfigura a todo o momento. 
Uma rocha a olhar para o mar e que consegue dar significado à vida. Ela fica. Só espero que a obra dure tanto ou ainda mais do que a bela rocha pintada num dia.

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