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Lágrimas de um veleiro...

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Cheguei cedo. A sala de almoço estava vazia. Cheguei cedo porque tinha saudades da bela e gostosa sopa. Fiz o que tinha a fazer, refugiei-me no aroma que emanava da tina. Tudo se combinava numa delicada atmosfera. O tempo, cinzento e sonolento em demasia para o meio-dia, abriu de par em par as portas do seu quarto. Olhei-o e vi o seu sorriso a querer dizer, "hoje não saio daqui e nem vou atormentar ninguém. Apetece-me sonhar vestido das belas e fantasiosas nuvens que deixei lá fora". Sorriu. O tempo sorriu num dia cinzento, calmo, suave e delicado em que pequenas e esporádicas lágrimas tombavam sobre a planície dos braços do mar. Nada se mexia, nem o tempo que, deitado na sua cama, continuava a sorrir sem se importar com o destino dos seres humanos. Deixei que o efeito do espírito do vinho subisse muito discretamente até às faces, testemunhando o seu apreço pela liberdade sem ser visto pelo tempo. Um efeito adocicado, volátil, a querer misturar-se com as lembranças do pass

Carnes vermelhas e transformadas!

Arrepio-me com a forma como são dadas certas notícias. A última teve a ver com a declaração oficial por parte da OMS de que as carnes processadas são cancerígenas. Como foi a OMS a dizer, logo, a rede de comunicação social, sempre ávida e pronta a reagir a tudo o que é sensacional, fez o que lhe competia. Competia?! Tenho algumas dúvidas. Faz o que lhe apetece, ou seja, "informar", melhor, desencadeia alarmes qual sismo de grau 7,5 da escala de Richter. Uma parvoíce que vende e que atrai as pessoas, os ouvintes ou os leitores. Fico mesmo com a sensação de que julgam ter feito o melhor para defender a "saúde" das populações! Considero esta última observação como a forma mais suave de criticar ou apreciar as suas atividades. Na verdade, tenho de confessar, graças à liberdade de expressão, e aos conhecimentos adquiridos ao longo de muitos decénios de estudo e de investigação, que muitos dos informadores não passam de uns pataratas pretensiosos, mesmo a raiar a cretini

Passeio

A manhã chuvosa, e entremeada de um sol esperançoso, convidou-me para um pequeno passeio. Há manhãs curiosas, quando são despertadas pelo bocejar do tempo. A de hoje obrigou-me a palmilhar ruas e ruelas, a andar no presente ouvindo o passado, a ouvir frases soltas de gente preguiçosa e a ler os pensamentos de pessoas que olhavam para o lado como se estivessem à procura de anjos perdidos. Gente comum. Gente que corre, que balanceia, que escolhe, que pensa, que anda por andar e que não se cansa de sonhar. O tempo, por vezes, dilata-se em abraços intemporais. É quando sinto a vida, morna e suave, a querer testemunhar a benevolência e a boa vontade de um tempo que persiste, e que, de vez em quando, deixa de me atormentar, quando larga a sua espada de fogo que tanto gosta de empunhar em riste. Breve momento em que o tempo deixa de ser triste.

Os deuses estão entre nós!

"Para mim foi um deus que apareceu. Mais do que um anjo". Disse o sem-abrigo que foi resgatado da rua por um jovem cheio de bondade. Fugiu de uma situação ignóbil, da escravatura. Já conseguiu trabalho. Recuperou a liberdade e a dignidade. Uma pequena história que mexe com qualquer um que passe pela vida à procura de compreender certos fenómenos e sempre desejoso de ver finais felizes. Uma fração infinita da bondade humana, que merecia ser multiplicada de forma exponencial para fazer ver a Deus aquilo que não anda a fazer. Não anda e nem nunca andou. A par deste episódio, um outro também me chamou a atenção, entre muitos que têm ocorrido com os refugiados que fogem das guerras para as bandas do médio oriente; uma criança de dezoito meses perdida no meio do Mediterrâneo a ser salva por pescadores turcos que conseguiram reanimá-la. Fazia parte de um grupo de mais crianças que também foram resgatadas. Parece que andavam há cerca de cinco horas perdidas debaixo das barbas de deus

Greve de fome

Tenho acompanhado a greve de fome de um cidadão com dupla nacionalidade, angolana e portuguesa, Luaty Beirão. Reconheço que é um sacrifício difícil de compreender. Deixar de comer e enfrentar o risco de morte por motivos de natureza política? Para quê? Comer é o mais poderoso estímulo que serve a vida, seguido da reprodução. São os dois principais motores da existência. Renunciar à alimentação, como forma de pretexto pela iniquidade e falta de respeito dos que têm o dever de promover e defender os direitos e o bem-estar dos seus semelhantes, é uma das supremas formas de manifestação de amor. Morrer para defender os irmãos. Respeito muito esta decisão, porque permite-me recordar outras situações idênticas que, ao longo da história da humanidade, permitiram demonstrar a mais bela e estranha das solidariedades e contestação contra comportamentos que raiam ou são mesmo criminosos. Gostava de acordar amanhã ou depois e ouvir que Beirão interrompeu a greve. Gostava muito, mas não acredit

Viagem

Surpreende-me o sentido das viagens. São formas de viver o que não somos, talvez sejam imagens fantasiosas do que deveríamos ser. A mente, deserta, espreguiça-se na languidez temporária de discursos que fogem ao trivial, ao dia-a-dia, às coisas que são o habitual, o gastar do tempo da vida. Uma mera ilusão. No fundo, sinto o clamor do banal, aquilo de que é feita verdadeiramente a vida, uma sequência contínua de pequenos dramas, magras alegrias, esperanças vazias e esquecimentos dos tormentos que o futuro, desdentado, sem alma, e sem tolerância, sabe ou deseja oferecer. As viagens, sejam curtas ou não, ajudam-me a compreender, de longe, o significado do regresso, voltar a uma forma de ser e de estar que acaba por cansar.

Abraço esquecido

Tantas nuvens. Parecem diferentes das habituais. Há quem as considere como recém-nascidas. O mar em redor é a sua maternidade. Silenciosa, a planície deixa transpirar um ou outro suspiro trazido pela suave e brilhante ondulação. Se não se mexesse quase que diria que era um espelho onde as nuvens veriam a mãe antes de irem ao encontro do seu destino. Andam aos trambolhões. Começam a ficar mais espessas, enchem-se de recordações. Um dia destes irão lançar as suas saudades contras as janelas onde correm as lágrimas tristes de muitos corações. Nessa altura sentirão desejo de se abraçarem. Ficar-se-ão pelo desejo. As lágrimas do mundo não se misturam com as lágrimas de gente. Aí vão elas, como se fossem aves de arribação. Vão, mas quando voltarem virão de rastos palmilhando o chão da infelicidade. Nessa altura, arrastarão também as lágrimas de gente. Abraço desejado? Não. Abraço esquecido.