Lágrimas de um veleiro...

Cheguei cedo. A sala de almoço estava vazia. Cheguei cedo porque tinha saudades da bela e gostosa sopa. Fiz o que tinha a fazer, refugiei-me no aroma que emanava da tina. Tudo se combinava numa delicada atmosfera. O tempo, cinzento e sonolento em demasia para o meio-dia, abriu de par em par as portas do seu quarto. Olhei-o e vi o seu sorriso a querer dizer, "hoje não saio daqui e nem vou atormentar ninguém. Apetece-me sonhar vestido das belas e fantasiosas nuvens que deixei lá fora". Sorriu. O tempo sorriu num dia cinzento, calmo, suave e delicado em que pequenas e esporádicas lágrimas tombavam sobre a planície dos braços do mar. Nada se mexia, nem o tempo que, deitado na sua cama, continuava a sorrir sem se importar com o destino dos seres humanos.
Deixei que o efeito do espírito do vinho subisse muito discretamente até às faces, testemunhando o seu apreço pela liberdade sem ser visto pelo tempo. Um efeito adocicado, volátil, a querer misturar-se com as lembranças do passado. Deixei que se libertasse de uma forma suave ao mesmo tempo que o via a enfeitiçar-se pelas imagens paradas no tempo e na memória dos que já não a tem.
Olhei para os lados e vi o silêncio de um dia diferente dos outros. Parou tudo, as nuvens, as aves e a vida dos que já viveram. Olhei através do vidro; as lágrimas do passado surgiram sem som, sem dor, sem saudade e sem medo, mostrando apenas a imagem de um belo navio parado. Fiquei enfeitiçado. Lentamente as suas formas esvaneceram-se atrás das lágrimas que o tempo ia largando na languidez do seu leito de vida, recordando o que nunca vi ou senti. À minha frente reparei que os navios também choram quando o tempo não quer sair do seu quarto a meio de um dia em que lhe apeteceu recordar o passado dos que já não têm memória.
Só as lágrimas de um veleiro consegue acalmar e dar paz ao tempo passado, fazendo esquecer o presente.

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