Não deixo de me surpreender durante as minhas
consultas, umas vezes pela positiva, outras pela negativa e, por vezes, pelas
lições de vida que recebo. Na mesma tarde, e de forma sequencial, três mulheres
ensinaram-me imenso. Trabalhavam todas nas limpezas e já não eram nada novas,
mas necessitam de trabalhar para ganhar o pão. A primeira contou-me que tinha
tido uma empresa de pintura de cerâmica onde chegaram a trabalhar onze pessoas.
Teve que as despedir e foi obrigada a arranjar um emprego. Via-se que a senhora
tinha alguns tiques de ter vivido bem. Olhei para o seu pescoço e despertou-me
a atenção uma extraordinária medalha em ouro finamente trabalhada representando
a Cruz de David e no reverso um menorá. Ao redor frases em português.
Perguntei-lhe se era judia. Riu-se, meia. Meia? Explique-me melhor. Afinal era
cristã, embora com ascendência judaica. Mas o raio da medalha perturbava-me
pela qualidade. Não é muito vulgar tal artefacto em ouro. Explicou-me que foi
ela que a mandou fazer a partir de uma medalha de metal que uma senhora
encontrou para os lados de Ílhavo. Mandou fazer uma réplica. As frases, em
português, palavras de Deus, eram um estímulo de esperança no futuro. Curioso,
uma medalha com motivos hebraicos e em português dos finais do século vinte.
Falámos durante algum tempo até que me perguntou, não é desonroso trabalhar nas
limpezas, pois não, senhor doutor. Agarrei na medalha e li o que nela constava.
Não, minha senhora, seja qual for o trabalho, seja qual for a nossa condição, é
a melhor das honras que um ser humano pode usufruir. Saiu confortada.
A seguir, entra uma senhora com setenta e
dois anos. Trabalhava, também, nas limpezas. A face era de alguém muito mais
nova, bonita mesmo. Não queria acreditar que tivesse aquela idade. Num ápice
relatou-me a sua vida. Tudo porque lhe perguntei porque continuava a trabalhar.
Não tinha tempo de descontos. Começou a descontar apenas há doze anos, quando
se divorciou. Antes era costureira e nunca fez qualquer desconto, nem para a
Casa do Povo. A senhora divorciou-se aos sessenta anos? Quanto tempo esteve
casada? Estive trinta e dois. Casei-me aos vinte e oito, tive três filhos e o
meu homem trocou-me, trocou-me por homens. Como? Foi então que desatou a
explicar que logo de início começou a desconfiar dele, porque não a procurava.
E para arranjar os filhos não foi nada fácil. Deixei-a contar as peripécias de
uma vida a que teve de se sujeitar para poder criar os filhos. Mais tarde, a
violência era uma constante, que diga as dores na coluna e no pescoço, zonas
apetitosas para o energúmeno. Arranjou coragem e aos sessenta anos saiu de
casa, fez-se à vida e tem trabalhado como uma moura à espera de conseguir o
tempo mínimo para poder usufruir algum conforto. Espera poder conseguir
resolver o seu problema daqui a três anos. Chamou-me a atenção o facto de não
manifestar rancor pelas amarguras que a vida lhe proporcionou.
A terceira, de idade a raiar os sessenta e
muitos anos, alquebrada, portadora de um esqueleto doloroso, manifestando
sinais de ciatalgia, com limitações mais do que evidentes para o exercício de
mulher de limpeza, contou-me a sua história. É um condão que tenho, algumas
pessoas, as mais sofredoras, abrem-se de uma forma que me perturba, caindo nas
suas intimidades quase de imediato. Vivia bem, muito bem, dois filhos e um
marido que morreu de acidente de viação há cerca de dezoito anos. Foi fiador de
um amigo, que passou os seus bens para a mulher, e declarou falência da
empresa. "Herdou" quarenta mil contos de dívidas. Negociou com o
banco e desde então paga oitocentos euros mensais. Oitocentos euros? Mas a
senhora não ganha isso. Riu-se, pois não. Somos nós os três, ela e os filhos, a
amealharem mensalmente para poderem pagar, o pior é que temos meses em que o
dinheiro não dá para a comida. Mas ainda falta muito para pagar tudo? Faltam
cinco anos. Olhe, já estou habituada. No início, se tivesse tido oportunidade,
ainda era capaz de dar uns cem ou duzentos contos para que alguém o matasse,
mas não apareceu ninguém. E o sacana? Anda pela terra, um desgraçado, um
tinhoso a que ninguém liga. Tinha que preencher a sua ficha de aptidão,
apeteceu-me escrever, "apta para usufruir o direito à felicidade".
Fiquei com a sensação de estar perante um velho condenado às galés, sem culpa,
resignado, sem direito a beneficiar um momento de felicidade.
Viver já custa, mas viver para pagar as
dívidas de outrem é o mesmo que ser enclausurado inocentemente. Mas trabalha,
com dores no corpo e com dores na alma. E ainda me queixo...
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