Terra quente...


Nasceu da terra, num dia quente de verão. Criado na abundância da miséria rural, cedo soube o que era a fome e também donde vêm os alimentos. Gostava de esgaravatar a poeira de que tudo é feito, jogando-se no meio das ervas, desviando frisos de água empastada de terra, fazendo lama fresca, com a qual construía muros, casas e castelos e figurinhas filhas de uma imaginação rica e esperançosa. Aprendeu a adorar a deusa da fertilidade e a conhecer o movimento das sementeiras e das colheitas, como se fossem espelhos do que existia nos céus. Ensinaram-lhe a ter esperança e respeito pelos seus semelhantes. Acreditou que um dia tudo se transformaria; a fome desapareceria e a alegria do bem-estar surgiria numa fresca manhã de São João, época em que não se sente tanto a força do desespero do estômago. Acreditou nisto tudo e em muito mais. Mas não, afinal, continuava tudo na mesma, havendo mesmo alturas em que a natureza, a serva de Deus, e a outra, a natureza dos homens, se esqueciam dele. Começou a desconfiar de que algo estaria errado, mas, como lhe ensinaram a ter esperança e fé e nunca desistir, continuou a acreditar que o tal dia da bem-aventurança iria surgir.
Passa o tempo, nascem as vicissitudes e os trabalhos. À medida que os anos se iam sucedendo os martírios acentuavam-se abrangendo todo o mundo que conseguia alcançar. A alma, sofredora, começou a definhar por falta de alimento; quanto ao estômago há muito que se tinha habituado a esfregar as suas paredes uma contra a outra. Os pobres sabem habituar-se à fome.
Era na terra que procurava algum aconchego, e sabia, como ninguém, saborear um pouco de alegria, mexendo nas suas entranhas e acariciando rebentos verdes e floridos. Olhava, com uma esperança comovente e desesperada, para a pantalha de cores do céu, azul nuns dias, negro e triste noutros, esperando o tal sinal de que o seu bem-estar chegaria antes do fim do mundo. Entretanto, as dores do tempo começavam a roer-lhe os ossos.
Todos os dias rumava ao nascer do sol para o seu exílio natural, fugindo à amargura da vida. Um dia, estava a terra quente, tal como quando nasceu, sentou-se no chão. O mal-estar que lhe atormentava o peito obrigou-o a descansar. Sempre que o sentia ficava um pouco ansioso, como se fosse um sinal de qualquer coisa. Olhava em redor e procurava o bem-estar prometido, mas não via nada. Desta feita, tocou, com as mãos calejadas, a terra quente e sentiu uma sensação muito agradável a percorrer-lhe o corpo como se fosse um carinho de uma mãe ao filho, confiante de que encontraria o bem-estar. A terra tem destas coisas. Hoje, a terra-mãe estava triste, sentia frio, muito frio, talvez devido à tristeza de ver o seu filho tão mal tratado. Então, a terra começou a arrefecer rapidamente, estremecendo de ansiedade por o ver desesperançado. Lentamente começou a absorver-lhe o seu calor. Pela primeira vez na vida o filho da terra sentiu uma estranha tranquilidade a invadir-lhe o corpo e a alma. Afinal, o bem-estar sempre acabou por chegar, pensou. Valeu a pena manter a esperança.
Encontraram-no frio no dia seguinte, calmo, com um semblante de felicidade, deitado sobre a terra quente, febril, dorida. A terra, ao reclamá-lo, jurou nunca mais dar nenhum filho à humanidade. Para quê, se dos lados dos céus se esquecem dos seus filhos.

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