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Efeitos do sol

O calor do meio-dia é estranhamente arrasador, sobretudo nesta rua, neste passeio e deste lado, do lado do sol. Credo, por que será? Ainda tentei passar para o lado oposto, mas a preguiça, o receio de ser atropelado e a estranha convicção de que os poucos metros que me faltavam percorrer pudessem ser transpostos sem problemas de maior, obrigaram-me a permanecer naquela margem que mais parecia a antecâmara do inferno. A cabeça começou a escaldar, o que não é muito bom, e recordei-me de imediato dos velhos conselhos da minha avó e tias que afirmavam solenemente que a causa da meningite era o sol, facto que fazia com que ficasse proibido de sair de casa à hora do calor. E quem apanha uma meningite morre, e se não morrer fica tolinho. "Queres ficar tolinho como o e a...", de seguida enumerava várias pessoas que eram mesmo tolas e tolinhas. Não é que me convencessem muito, mas não sabia e nem tinha argumentos para lutar contra afirmações tão "científicas". Só encontrava uma alternativa, fingia que adormecia, e, assim que ouvia o ressonar sinfónico, perfeitamente dessincronizado do pessoal, saia para a rua. Que se lixe o sol, só balelas. E como das primeiras vezes não adoeci de meningite, nem das primeiras nem das segundas, continuei com a minha prática. O pior era quando me apanhavam, tinha logo uma carcereira à porta do quarto a vigiar os movimentos do fugitivo. Chatas! Ficava-lhes com uma raiva. Ia pensando nestes episódios quando vislumbro uma figura feminina a aproximar-se. Achei-a estranha, talvez fosse o efeito do sol a bater-me nos olhos, toldando-me a visão ou, então, o super aquecimento do cérebro. As formas femininas típicas tinham desaparecido há já algum tempo, o cabelo, totalmente desgrenhado, estava a precisar de cuidados mínimos imediatos, e vinha a falar sozinha. A boca, quando se entreabria, deixava visualizar a falta dos incisivos inferiores. A mão direita fazia círculos imaginários usando como giz um cigarro. Relevava um conjunto de sinais perfeitamente compatíveis com algum grau de loucura. Será que apanhou sol a mais na mioleirinha em criança, pensei. Quando me cruzei com ela, vi que vinha a falar e tive a sensação de que teria uns auscultadores camuflados debaixo de uma farta e mais do que descuidada cabeleira. Deveria ir a falar ao telemóvel. É normal, concluí. Que pena, julgava que fosse meio louca...
Não posso apanhar este sol ao meio-dia. Convenço-me de que é mesmo perigoso. Já estou a ver os sorrisos desdentados dos familiares avoengos, no outro lado, a fazer sinais invisíveis para que não apanhe sol e ponha o boné. Está bem, amanhã penso nisso. Que chatas! Até do além estão com estas recomendações...

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