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Parto da morte

O parto da vida pode ser muito doloroso, mas é compensado pelo calor de uma nova existência, embrechada de alegria e de esperança. O parto da morte pode ser muito doloroso e tem como compensação a libertação da existência, despejada de alegria e sem esperança. 

Sei que o meu parto foi doloroso, mas encheu de felicidade e de alegria a minha mãe.

Tento procurar entre o nevoeiro dos meus primeiros tempos de existência onde é que ela estava. Não consigo vislumbrá-la com clareza, talvez a voz, doce, talvez o calor do corpo, suave, talvez a luz da alma, brilhante, talvez tudo, misturado em proporções variáveis que, com o tempo, se materializou na sua figura, ou melhor, na sua presença. Uma estranha sensação de proteção, inebriante às vezes, cáustica e certeira noutras. São tantos, tantos os episódios de vida e de cuidados que guardo, tudo caldeado em belos e coloridos frascos de compota. Tantos sabores, tantas cores, tantos episódios, tantos carinhos, tantas tareias, tantos afectos, tantas preocupações, tantas vivências.

Um dia, seduzido por uma bela caixa azul suave, de baquelite, surripiei-a, sem que desse conta, de uma gaveta onde estava escondida. Abria-a e vi uma espécie de fita, pequena, negra, esquisita, embrulhada em meio de algodão emarelecido. Deitei fora o conteúdo e pus-me a brincar com a bela caixa. Ao ver-me com ela na mão ficou aflita, tirou-ma, abriu-a e ficou pálida. Onde é que puseste o que estava dentro da caixa? Perguntou-me muito irritada. Deitei fora, era uma coisa negra e feia, não prestava. Ai meu desgraçado, então, tu deitaste fora aquilo que me prendeu à tua vida! Eu fiquei de boca aberta, sem perceber, mas vi que deveria ser alguma coisa muito importante. Mais tarde entendi do que se tratava. Era uma recordação única, tinha-a guardado com tanto zelo e amor. E aquela mão, que na altura soube acariciar à maneira o meu traseiro, apertava agora a minha nas últimas horas de vida. Era a única parte do seu corpo que tinha ainda calor ou recebia-o. A respiração, estridulosa, anunciava o fim, intensificando-se de forma gutural e abrasiva, não para si, que há muito deixou de saber que existia. De vez em quando lançava um estranho olhar como a querer dizer algo. Às tantas não queria dizer o que quer que fosse, mas a expressão era funda, perturbadora. De súbito fechou os olhos, continuando a sua respiração de afogada no mar da morte.
Não senti a presença de quaisquer divindades, e também não fui capaz de as invocar para que a libertassem do sofrimento.
Não sei o que senti, talvez uma serenidade incómoda, irritante mesmo. A mão que me deu a mão continuava quente num corpo em arrefecimento pelo frio do esquecimento. O cordão do parto da morte caiu-me nas mãos. Que fazer com esta recordação? Vou colocá-la numa bela caixa azul suave. Vou guardá-la na gaveta da minha imaginação, e, desta vez, ninguém vai abri-la e deitar fora o seu conteúdo. É para mim, só para mim.
Vá, pronto, já está. Descansa.
Dei-lhe um beijo na testa, o último da vida e o primeiro da morte.

Santa Comba Dão, 6 de setembro de 2012

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