Exmo. Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão.
Exmas autoridades.
Caros concidadãos e concidadãs.
Hoje, Dia de Portugal, vou usar da palavra na dupla qualidade de cidadão e de Presidente da Assembleia Municipal.
Palavra. A palavra está associada ao nascer do homem, a palavra vive com o homem, mas a palavra não morre com o homem. A palavra, na sua expressão oral, escrita ou no silêncio do pensamento, representa aquilo que interpreto como sendo a verdadeira essência da alma. A alma existe graças à palavra. A palavra é o seu corpo, é a forma que encontro para lhe dar vida. Hoje, vou utilizá-la para ressuscitar no nosso ideário corpos violentados pela guerra, buscando-os a um passado um pouco longínquo, trazendo-os à nossa presença para que possam conviver connosco, partilhando ideias, valores, dores, sofrimentos e, também, alegrias nunca vividas.
Quando somos pequenos vamos lentamente percebendo o sentido das palavras, umas vezes é fácil, mas outras é muito mais difícil. É assim que compreendemos quem somos e o que são as coisas.
Um dia comecei a perceber qual era o sentido da palavra guerra. Recordo muito bem esse momento. Olhei para o monumento e fiquei muito incomodado com a imagem de uma mãe, humilde, lenço na cabeça, a ser abraçada pelo filho vestido de soldado, despejando lágrimas de bronze no seu ombro, lágrimas de desespero, como que antevendo algo de sinistro, o seu não regresso. Hipnotizou-me. Perguntei o que era "aquilo", embora pressentisse, mesmo sem ter as devidas palavras, que era uma coisa triste. Ouvi, é uma mãe que se está a despedir do filho que vai para a guerra. E o que é a guerra? Onde fica? Entreolharam-se e, em meios silêncios e adiamentos, empurraram-me para o futuro. Um dia saberás o que é a guerra.
Com o tempo fui aprendendo o que era a guerra, ouvindo relatos das guerras, uma tinha acabado ainda há pouco, e de uma outra vivida por alguns que por lá andaram, que repetiam até à exaustão sempre os mesmos episódios como se quisessem esconjurar pesadelos reais. Eu ouvia-os. Morreram muitos e muitos dos que regressaram acabaram por morrer em suas casas vitimados pelos efeitos da mesma, mortes adiadas, mas também mortos de guerra.
Na escola falavam de guerras passadas que ajudaram a criar a nossa identidade como povo, às quais juntava a mais recente e, durante o curto período escolar, ainda consegui juntar mais uma, aquela que se tinha entretanto iniciado e que ameaçava aprisionar os mais novos. A cultura de guerra imperava naquela altura. Afinal, a guerra não era coisa do passado mas também era do presente e do futuro. Havia uma impregnação permanente deste tipo de conduta, um espírito de guerra, que é muito típico da humanidade, e até a passagem, quase quotidiana, sobre a ponte do rio Dão me obrigava a recordar e a viver outras lutas ali ocorridas, outras guerras, outros tempos, relembrada naquela bela memória, sempre com o mesmo objetivo, lutar por algo que só se obtém através do sangue e da morte.
Perguntava, tinha de saber, o que é que tinha acontecido, porquê tantas guerras, porquê tantos mortos, porquê tanto sofrimento, tanta destruição e tanta dor. Absorvia como uma esponja todas as informações e, lentamente, comecei a compreender e a registar tudo o que me ajudasse a compreender o que muitas vezes é mesmo incompreensível. Aprendi a respeitar com emoção e orgulho a dedicação e o sacrifício de compatriotas que deram a sua vida pelos outros. Não só pelos que viviam na altura, mas por aqueles que iriam nascer um dia e que viveriam numa sociedade construída sobre corpos de homens valentes, corajosos e desconhecidos. O heroísmo não se esgota no momento em que se luta ou se perde a vida, o heroísmo perpetua-se no futuro como uma espiral sem fim que, muitas vezes, ignora a tal gente, generosa, brava, com belas histórias que mereciam ser contadas, gente desconhecida que morreu em diversas batalhas, como foi o caso da guerra da Flandres e da guerra da África.
A guerra da Flandres e a guerra da África, chamo-as assim, em vez da primeira Grande Guerra, porque na altura em que os nossos compatriotas lutaram, morreram e desapareceram ainda não tinha sido batizada, nem como Grande Guerra, nem como a primeira. O batismo de uma pessoa faz-se depois de nascer, enquanto o de uma guerra faz-se depois desta morrer. Na altura, as lápides de alguns soldados mortos, cujos corpos foram resgatados dos campos da Flandres, ostentam, "Morto na Guerra da Flandres", como podemos ler, embora com alguma dificuldade, na campa de um dos homenageados de hoje, no cemitério de Santa Comba Dão. A história deste soldado já foi contada em páginas de jornais locais, uma história comovente e trágica, vivida por conterrâneos que por lá andaram e que sofreram com o seu desaparecimento e, também, pela honra e dignidade como foi feito o seu resgate para ser sepultado na sua terra.
A onda de solidariedade e de tristeza que invadiu o Portugal de então, pobre, desgovernado e desnorteado, contemplado com tamanho desaire e devastação de mortos e desaparecimentos no conflito mundial marcou a ferro e fogo o coração dos nossos compatriotas que, não obstante a extrema pobreza em que viviam, mesmo assim, num gesto imorredoiro do conceito de honra e de respeito, levantaram pelos inúmeros cantos, cidades e vilas do país, belos e sentidos memoriais aos nossos heróis, que constituem uma das mais profundas e inequívocas manifestações de gratidão jamais revelada em Portugal. Só um grande cataclismo, uma grande tragédia, poderia reunir as vontades de mostrar ao futuro o significado do respeito, da honra, da dignidade e da bravura de todos os soldados que lutaram e morreram em tão devastador conflito, quer nas planícies do cemitério da Flandres quer nas terras quentes de África.
Ao andar por Portugal fora, encontramos monumentos aos mortos das Guerras da Flandres e da África, sempre bem tratados, com nomes que entretanto se tornaram desconhecidos, mas que perduram e irão continuar a alimentar a memória coletiva. E não é raro tropeçar nalguns com belos e frescos ramos de flores colocados por quem se identifica com os seus valores e heroísmo. Aquando do dia 9 de abril, data da trágica batalha de La Lys, em que milhares de soldados portugueses foram mortos e feitos prisioneiros, não posso esconder uma estranha emoção, recordando-os, como sempre tenho feito, lembrando-me de alguns episódios. Um deles foi em pequeno. Fui ao mosteiro da Batalha pela primeira vez, e, fugindo à vigilância dos adultos, entrei numa pequena sala onde estavam dois soldados armados em posição de descanso. Ao entrar os dois apresentaram armas a uma criança. Fiquei de boca aberta. Mas o que é que estavam ali a fazer? Porquê a chama? Havia dois túmulos. Saí de costas, com respeito e muito surpreendido. Procurei saber do que é que se tratava. Explicaram-me que era o túmulo ao Soldado Desconhecido. Neste caso eram dois túmulos de soldados desconhecidos mortos em combate, um na Flandres e o outro em África.
Santa Comba Dão não precisa, a partir de agora, de se socorrer do Túmulo ao Soldado Desconhecido, porque acaba de erigir o seu memorial. Talvez constitua o último concelho a prestar homenagem aos seus heróis da Guerra da Flandres, tantos anos após o seu termo, quase um século depois, mas nunca é tarde para cumprir uma promessa, promessa feita em tempos pela nossa comunidade, que, agora, fica satisfeita. A consciência comunitária fica finalmente em paz ao homenagear a lembrança da guerra.
A palavra fez nascer o homem, a palavra obriga-nos a viver e a palavra viverá mesmo depois de morrermos.
Diz o povo que as almas precisam de paz, mas nós, humanos, precisamos da vida das almas, o mesmo que dizer das suas histórias, dos seus valores e das suas palavras.
Termino citando uma pequena frase em homenagem a todos os soldados desconhecidos, lia-a e guarda-a numa peça perdida, desenhada e gravada a fogo, a encimar um anjo, não sei se o anjo da morte ou da liberdade, "...Flandres, onde a aza da epopeia traçou a sangue a cruz de Christo".
Hoje, os santacombenses também traçaram em palavras, e em gestos, a cruz de Cristo, irmanando as suas homenagens ao lado de outros heróis cujos nomes repousam aqui mesmo ao lado.
Os mortos também são irmãos.
Descansem em paz.
Um povo que se esquece dos que morreram por ele é um povo sem palavra. Hoje, Dia de Portugal, é o dia da beleza e da pureza do verdadeiro significado da palavra. O dia é de todos, dos vivos e dos mortos.
Viva Portugal.
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