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"Dez horas"..,

O sino da torre acaba de dar as dez horas. O som é o mesmo de sempre e fez-me lembrar as dez horas de outros tempos, a hora limite para ir para casa. Repete sempre, passado um ou dois minutos, não sei bem, o tempo que mediou as palavras escritas até agora, incluindo o título. Pode parecer pouco, mas, para mim, as dez horas eram apenas ao segundo toque e nunca ao primeiro. Um breve momento, mas para quem andava em correrias loucas, ou tinha de acabar um jogo, era muito importante. Depois, a tristeza invadia-me e ia a correr até casa. - Cheguei! Já deram as dez horas. O silêncio não me confortava, apenas me irritava, porque ainda conseguia ouvir as gargalhadas e os gritos dos outros a serem transportados ao longo da ribeira, o que me entristecia ainda mais. Eram as regras e eu não as queria quebrar, porque senão corria o risco de não sair à noite no dia seguinte, e desfrutar da liberdade vigiada pelos adultos e pelo movimento que àquela hora era uma constante. Havia o jardim, com as su

"Nada"...

Nada. Não tenho nada para fazer. O sol queima. Deve estar furioso com qualquer coisa. Fica assim quando o aborrecem, mas não fui eu. É o que eu penso. O melhor é ficar em casa até que acalme e fique mais dócil. Aquilo passa-lhe. Logo, para o final da tarde, fica mais calmo, mais doce, mais terno e mais humano. É a melhor hora para conversarmos. Ele sabe disso, sobretudo nesta altura em que não faço nada. Sabe, porque tem ciúmes da lua, que nesta época mostra a sua beleza em toda a plenitude. Agiganta-se com a sensualidade de agosto e permanece assim durante muito tempo apagando tudo em seu redor. Nada brilha, a não ser ela. O seu silêncio, perturbador, atrai, e põe qualquer um a conversar com ela. Prenhe de satisfação e de alegria, anuncia vida nova, a vida que alimenta a alma dos poetas. Olhá-la é saborear a liberdade. Ela sabe. Por isso é que engravida sempre nesta altura e entrega o fruto do seu ventre apenas a quem a sabe respeitar. O sol sabe disso e fica invejoso por não lhe da

"Fotografia de sons"...

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Acordei com uma estranha sensação de prazer após uma sesta involuntária. Até parece que andei no outro mundo. Devo ter sonhado, mas não consegui lembrar-me de nada, só sei que ondas de formigueiro percorriam os meus meridianos do prazer. Não sei onde é que eles estão mas posso imaginá-los. Levantei-me do sofá, e sem saber o que fazer, não me apetecia ficar à mercê do sol, fui dar uma volta. Acabei no velho planalto onde os sons de origem humana não conseguem penetrar. Um verdadeiro santuário, onde os nossos antepassados deveriam sentir o mesmo que eu, admirar a beleza da natureza, orar aos deuses de então, questionar sobre a vida e a morte e aprender a amar o que deve ser amado. Solo sagrado, a testemunhar pelos monumentos à eternidade das suas almas. Ali depositavam os seus corpos, aprisionando as suas almas àquele espaço. Os corpos há muito que desapareceram, mas as almas não. Ouço sons. Não os entendo, mas ouço-os, parece que é o vento a beijar as árvores, mas não, devem ser

"Sono"...

- Estás com sono? - Não. Embora me apetecesse dizer a verdade, que sim, que estava, mas não disse. - E tu? - Estou cheiinha. Vou mas é para a cama.  Criei o título segundos antes de me ter perguntado se estava como sono, porque estava mesmo, mas queria escrevinhar qualquer coisa antes de me deitar.  Escrevinhar sob o efeito do sono é como desejar uma noite sossegada e repleta de sonhos confortadores. Uma forma de fugir à realidade e criar uma outra, diferente, feita à minha medida. Para isso precisava de saber o que é uma medida de vida, o que desconfio muito.  Escrevinhar sob o efeito do sono é sentir um peso suave capaz de alimentar a vida, acender a esperança e apagar o receio e a incerteza.  Escrevinhar sob o efeito do sono é parar o tempo e congelá-lo com um ardor quente de sentimentos e doces lembranças.  Escrevinhar sob o efeito do sono é despertar para uma nova dimensão, a da paz, a da alegria e a do espanto por tudo que desconheço e que gostaria de saber.  Escr

"São Martinho e Galeno"...

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Domingo. Cumpri o meu ritual, fui a uma casa de pasto onde aprendo e apreendo muitas coisas. Época de verão, a presença de emigrantes permite-me ouvir novas histórias para poder construir outras, a par dos autóctones, que são sempre muito ricos nas suas vivências e falas no resto do ano. A forma de ser e de estar de alguns deles foi motivo para alguns reparos que acabei por fazer. Apesar de parecer estar na moda a aceitação pura e simples dos seus comportamentos, mesmo que demonstrem alguma arrogância e ostentação, transformadas em sinónimos de "preconceitos" para quem os critica ou não os aceita, o que me diverte, confesso, porque muitas vezes não passam mesmo disso, levou-me, após o repasto, simples e frugal, a comentá-los com algum detalhe. Entretanto o carro ia à deriva, como já é habitual, para regressar a casa pelo caminho mais longo.  Começo a ficar preocupado, porque começam a faltar alternativas ao regresso. Cada vez tenho que ir mais longe. De qualquer modo

"Segredo"...

Certos segredos conseguem queimar mais a alma do que passar a eternidade no inferno. São filhos de comportamentos abjetos, perversos e animalescos, que emergem das profundezas do que há mais de primitivo no ser humano. São frutos de erupções imprevisíveis. São capazes de destruir qualquer um. Quando as vítimas despertam da acalmia da turbulência, inesperada e dolorosa, sentem que as suas almas estão rasgadas, esfrangalhadas e são acometidas por sofrimentos indescritíveis, como se estivessem possuídas por um diabólico sentimento de destruição que as quer consumir. Arrastam-se longamente com a mesma angústia que os afogados devem sentir naqueles breves e horríveis momentos que precedem a morte. Só que não morrem, mas sentem-se como afogados. Não sabem muitas vezes quem procurar, não podem partilhar os seus problemas, não conseguem confessá-los, embora desejassem. São segredos horríveis. Por vezes sou confrontado com algumas situações que nunca pensei passar, embora saiba que existem. Q

"Manhã"...

Levanto-me depois de uma noite de descanso e cumpro um ritual de férias, vou para a sala, abro as janelas, deixo entrar o suave e morno perfume da manhã, acendo a televisão, pego no que estiver à mão e observo se está tudo no sítio, a serra ao longe ainda lá está, as casas dos vizinhos também, mas hoje o azul do céu está pintado no horizonte de um cinzento descorado e ligeiramente rosa a testemunhar a presença do diabo pelas florestas. Sento-me. Ouço a passarada feliz. Vou continuar a descansar, a não fazer nada, como se fosse a coisa mais importante do mundo. Por vezes até é, não fazer nada ou fingir que não se faz nada. Pego num livro, pego numa revista, afinal o que faço é apenas mudá-los de lugar. A televisão debita notícias. Fujo, habitualmente de manhã, dos canais nacionais por mera proteção, para que não me recordem os males que nos atinge e não ouvir o massacre dos que teimam em esburacar as feridas com os seus dedos, grossos e imundos, uma prática que devem julgar como sen