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"Manhã"...



Levanto-me depois de uma noite de descanso e cumpro um ritual de férias, vou para a sala, abro as janelas, deixo entrar o suave e morno perfume da manhã, acendo a televisão, pego no que estiver à mão e observo se está tudo no sítio, a serra ao longe ainda lá está, as casas dos vizinhos também, mas hoje o azul do céu está pintado no horizonte de um cinzento descorado e ligeiramente rosa a testemunhar a presença do diabo pelas florestas. Sento-me. Ouço a passarada feliz. Vou continuar a descansar, a não fazer nada, como se fosse a coisa mais importante do mundo. Por vezes até é, não fazer nada ou fingir que não se faz nada. Pego num livro, pego numa revista, afinal o que faço é apenas mudá-los de lugar. A televisão debita notícias. Fujo, habitualmente de manhã, dos canais nacionais por mera proteção, para que não me recordem os males que nos atinge e não ouvir o massacre dos que teimam em esburacar as feridas com os seus dedos, grossos e imundos, uma prática que devem julgar como sendo a melhor cura! Mesmo assim ouço e vejo o sofrimento dos que são acometidos pelo ataque furioso das chamas, uma dor e angústia que me fazem estremecer. Mudo para um canal estrangeiro noticioso e deparo-me com uma mãe egípcia, sentada ao lado do seu filho morto, com a cabeça ligeiramente virada para a câmara - não vira as costas ao corpo -, a sentenciar a sua dor, perfeita, visível, emotiva, sancionando-a com a revolta, com a vingança e com a esperança de que outras mortes limpem, façam esquecer, ou heroifiquem a morte do seu filho. Uma estranha combinação, a dor da morte do ente mais querido e o desejo de morte de outros. Amor e ódio, sempre presentes, fazem entender-me que só se pode apreciar uma delas através da outra. Uma espiral que emerge da noite dos tempos. Nada, não há nada que consiga mudar este comportamento, nada, nem mesmo as religiões, esses movimentos apelativos de amor ao próximo, que também sabem alimentar-se da "deformidade" criativa do homem. Queria descansar, queria não fazer nada, queria, mas não consigo. Dói-me ver o que vejo, dói-me ouvir o que ouço, dói-me sentir o que sinto, dói-me prever o que prevejo. Viver é apenas fazer doer. E eu que não queria fazer nada... 

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