"Dez horas"..,


O sino da torre acaba de dar as dez horas. O som é o mesmo de sempre e fez-me lembrar as dez horas de outros tempos, a hora limite para ir para casa. Repete sempre, passado um ou dois minutos, não sei bem, o tempo que mediou as palavras escritas até agora, incluindo o título. Pode parecer pouco, mas, para mim, as dez horas eram apenas ao segundo toque e nunca ao primeiro. Um breve momento, mas para quem andava em correrias loucas, ou tinha de acabar um jogo, era muito importante. Depois, a tristeza invadia-me e ia a correr até casa. - Cheguei! Já deram as dez horas. O silêncio não me confortava, apenas me irritava, porque ainda conseguia ouvir as gargalhadas e os gritos dos outros a serem transportados ao longo da ribeira, o que me entristecia ainda mais. Eram as regras e eu não as queria quebrar, porque senão corria o risco de não sair à noite no dia seguinte, e desfrutar da liberdade vigiada pelos adultos e pelo movimento que àquela hora era uma constante. Havia o jardim, com as suas áleas, bancos, canteiros, árvores e locais adequados para brincar às escondidas, tudo isto sob o olhar das inúmeras estrelas que a escassa iluminação não conseguia apagar. O fogo da brincadeira era tal que pedia para jantar o mais cedo possível, uma violação consentida na altura do verão, uma exceção que me permitia mais tempo para jogar. Não contava as oito horas, mas as nove sim, parava um bocado e punha-me a ouvir as badaladas. O pior era quando ouvia a meia hora seguinte, uma chatice. - Já falta pouco, que aborrecimento, e a noite está tão boa e as jogatinas e brincadeiras também. Aquela meia hora passava com muita velocidade. Um dia atrevi-me a pedir mais meia hora de tolerância. Não sei se pedi ou se reivindiquei. Mas a lembrar-me da reação penso que terá sido mais uma reivindicação do que outra coisa. Vá lá, não me correu tão mal como isso, valeu-me a intervenção dos avós que sabem ser tolerantes e acabaram por resolver a situação. Mas tinha que cumprir uma missão, fechar a porta da rua e apagar as luzes à medida que ia para a varanda antes de subir para o quarto. Aqui fiquei um pouco incomodado, fechar a porta da rua, subir as escadas e ter de andar naqueles corredores, cujas velhas madeiras rangiam como se os fantasmas acordassem imediatamente assim que apagasse os luze-cus, não era coisa que me agradasse, mas, enfim, fazia-o. - Fechaste a porta da rua? - Fechei. - Apagaste as luzes? - Apaguei. Olhava por cima do ombro para ter a certeza, se bem que dificilmente conseguiria ver se estavam ou não apagadas. - Vieste a horas. Sim senhor. Assim é que é! Pois, pensava, vir vim, mas, c'os diabos, ter de passar por aquela prova é que não ma apetecia nada, mesmo nada. Casa velha, tudo de madeira, portas e mais portas, corredores que até de dia metiam respeito devido à escuridão e agora ter de fazer aquilo. Não há dúvida, brincar tem muita força. Eu que o diga. O sino da torre sorriu com estas reflexões e para que recordasse esses momentos deu uma forte badalada da meia hora. - Vá, menino, são horas, são horas de ir para casa . Tens de cumprir as ordens. - Deixa-te disso! Não querias mais nada, pois não? Já lá vai esse tempo. - Pois vai, mas é sempre bom recordar, não achas? O raio do sino tem uma memória dos diabos. E então aquele toque, a badalada das dez e meia, não deixa qualquer dúvida...

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Fugir

Nossa Senhora da Tosse

Coletânea II