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"Fotografia de sons"...




Acordei com uma estranha sensação de prazer após uma sesta involuntária. Até parece que andei no outro mundo. Devo ter sonhado, mas não consegui lembrar-me de nada, só sei que ondas de formigueiro percorriam os meus meridianos do prazer. Não sei onde é que eles estão mas posso imaginá-los. Levantei-me do sofá, e sem saber o que fazer, não me apetecia ficar à mercê do sol, fui dar uma volta. Acabei no velho planalto onde os sons de origem humana não conseguem penetrar. Um verdadeiro santuário, onde os nossos antepassados deveriam sentir o mesmo que eu, admirar a beleza da natureza, orar aos deuses de então, questionar sobre a vida e a morte e aprender a amar o que deve ser amado. Solo sagrado, a testemunhar pelos monumentos à eternidade das suas almas. Ali depositavam os seus corpos, aprisionando as suas almas àquele espaço. Os corpos há muito que desapareceram, mas as almas não. Ouço sons. Não os entendo, mas ouço-os, parece que é o vento a beijar as árvores, mas não, devem ser almas a cantar estranhas e suaves melodias. Estou atento. Sinto arrepios de prazer a percorrer os meus meridianos. Sento-me nas lajes quentes onde outrora também se sentaram. A melodia continuava a vibrar e atraiu-me para a entrada da câmara. Aproximei-me e ouvi um rir de alegria, suave, fresco, como se alguém estivesse a cantar baixinho. Olhei para o fundo e não vi nenhum vulto, apenas sons a ondularem sussurrando numa língua que não entedia. Imaginei-a, nova, cabelos de azeviche, olhos de mel, sentada em posição fetal olhando para a entrada tentando ver a sua lua a nascer atrás da montanha. Por detrás os raios vermelhos do sol, que adormece na outra montanha, iluminam os seus cabelos conferindo-lhes um delicado e sensual halo. Lembra-se que foi nesta altura, em que a lua se enamora do sol, em que ambos trocam olhares concupiscentes, que a colocaram naquele local. Não se esquece, e todos os anos regressa do passado visitando aquele local sagrado, e canta como só ela sabe cantar, e reza aos seus deuses como só ela saber rezar, e ri-se como só ela sabe rir. Quis gravar a sua presença, mas só consegui registar imagens de sons, os mesmos sons que agora recordo ter ouvido nos meus sonhos...

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