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"São Martinho e Galeno"...



Domingo. Cumpri o meu ritual, fui a uma casa de pasto onde aprendo e apreendo muitas coisas. Época de verão, a presença de emigrantes permite-me ouvir novas histórias para poder construir outras, a par dos autóctones, que são sempre muito ricos nas suas vivências e falas no resto do ano. A forma de ser e de estar de alguns deles foi motivo para alguns reparos que acabei por fazer. Apesar de parecer estar na moda a aceitação pura e simples dos seus comportamentos, mesmo que demonstrem alguma arrogância e ostentação, transformadas em sinónimos de "preconceitos" para quem os critica ou não os aceita, o que me diverte, confesso, porque muitas vezes não passam mesmo disso, levou-me, após o repasto, simples e frugal, a comentá-los com algum detalhe. Entretanto o carro ia à deriva, como já é habitual, para regressar a casa pelo caminho mais longo. 
Começo a ficar preocupado, porque começam a faltar alternativas ao regresso. Cada vez tenho que ir mais longe. De qualquer modo, sei, tenho a certeza, de que poderei encontrar coisas novas. Tenho que as encontrar. É um imperativo existencial, conhecer e aprender por onde passo, seja com as pessoas, seja com a riqueza ou a pobreza dos lugares. Nunca sei para onde vou. Perguntam-me e eu respondo sempre: - Não sei! 
Passei por uma placa a indicar uma povoação, onde já passei vezes sem conta e nunca tinha parado. Dirigi-me até lá. Estacionei o carro junto da igreja na esperança de ver o seu interior, mas, como começa a ser habitual, estava fechada. Não importa, já estou habituado. Tomámos um café e regressámos pelo mesmo caminho. Olho para a porta da igreja, onde uma mão de metal barato, e desadequada, desfeava até dizer basta, e verifiquei que estava entreaberta. - Olha, está entreaberta! Será que se pode entrar? Com cautela, não fosse estar a cometer alguma imprudência, entrei no espaço, amplo, simples, bem cuidado, com um odor agradável, cuja origem não consegui descortinar, e avancei até ao altar. Olhei para o teto. Fiquei deslumbrado com uma belíssima pintura a retratar a lenda de São Martinho. Não queria acreditar no que estava a ver. - Quem é? - São Martinho. Rapidamente contei toda a história dele e sobretudo a razão de ser do chamado verão de São Martinho, período que ocorre todos os anos na mesma altura e com o qual Deus quer recordar o seu feito. - Bonito! Quando nos casámos estava tanto calor. - Pois estava! Estávamos no verão de São Martinho. Em poucos momentos aquela bela e ternurenta pintura fez-me recordar histórias e mais histórias que ocorreram naquele período. Saí aliviado e enriquecido. Mais uma experiência, que, à frente, foi enriquecida com outra. - Vais por esta estrada? Está péssima! - Vou devagar, quero ver o Mondego a correr neste local. - Que ponte é aquela? - Já vais ver! Entrei na velha ponte e do outro lado devia haver alguma festividade sob a sombra de muitos plátanos. - Olha! Uma feira de velharias e de antiguidades! - Bonito. Já estou a ver o filme. Parámos e comecei a ver aquelas bancas à beira da estrada. Havia algumas peças que me chamaram a atenção. Fiquei, naturalmente, pela atenção. De qualquer modo, gostava de adquirir uma pequena lembrança. Consegui um pequeno busto em terracota de Galeno. - Galeno aqui? Junto ao Mondego, perto de umas termas? Não é que seja nada de especial, mas obrigou-me a rever o seu papel e importância na área da medicina. A senhora, querendo mostrar o valor da personagem, começou a dizer-me: - É um escritor. - Bom, também escreveu, mas foi um médico do império romano do século II depois de Cristo. - Credo! Não sabia. É bom aprender com alguém que saiba. Sorri e adquiri a obra de alguém que muito respeito e admiro, Cláudio Galeno, que escreveu uma pequena obra intitulada "O melhor médico é também um filósofo".
Tudo isto graças à conversa que ouvi na casa de pasto, que me "desorientou", a ponto de o acaso ter traçado o percurso de uma tarde de domingo...

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