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Deuses infelizes

Silencio-me contra o muro inexpugnável da vida. Deixo andar. Não consigo acompanhar o seu olhar e ouvir a sua voz. Um muro que esconde o sol. Um mundo que me separa da alegria do sonho de uma vida nunca vivida. Deito-me na sombra de um muro que esconde o sentido do saber. Não quero ouvir, não me apetece falar, não desejo sonhar, não quero sentir nada, apenas cair no mais profundo esquecimento, local privilegiado dos deuses que se afastaram de um mundo criado por engano. Arrependidos? Sim! Não há ninguém perfeito no universo. Ninguém e nada. Existe apenas uma fantasia que alimenta o espírito dos que pretendem fugir da desgraça e do sofrimento. Tudo desaparece. Até os deuses, uns seres infelizes, sabem que um dia nunca mais terão adoradores. Nesse dia, os deuses conhecerão os que os seres humanos sentiram, sofreram e gozaram. Nesse dia chorarão. Nesse dia, os deuses silenciar-se-ão contra o muro inexpugnável da vida. Nesse dia morrerão. Os deuses também desaparecem. Felizmente.

Morte vestida de branco

A menina partiu em paz e sem dor. A sua memória não. Ficará indissoluvelmente ligada à alma dos seus pais e pairará na mente de muitos que seguiram mais um episódio em que a dignidade humana foi posta em causa. Custa-me imenso qualquer tipo de encarniçamento terapêutico baseado em princípios que estão muito para além do que exige qualquer ser que caia neste mundo e sofra vicissitudes impossíveis de descrever. A vida joga com a morte a todo o instante. No entanto, há circunstâncias em que o respeito pela ceifeira da vida é posto em causa, sobretudo quando são usados meios muito sofisticados com o intuito de manter a "vida" a todo o custo, como se isso fosse uma espécie de conquista. Arrepia-me a dialética que é usada para "explicar" os casos gravíssimos em que não há qualquer possibilidade de reverter a dor, o sofrimento ou uma existência com o mínimo de qualidade de vida. Não consigo compreender o que está subjacente a esta atitude, ou, então, sou obrigado a pensar

Sol negro

Apetece-me fugir da vida, mas acabo por verificar que é a vida que foge de mim. A sensação de frustração é violenta e muito dolorosa. Olho, ouço e sinto que não consigo encontrar o meu lugar. Cada dia que passa fico mais distante do desejado. Almas humanas embrutecidas, cuja aparente humildade esconde muita arrogância e oceanos de mesquinhez, ofendem-me e fazem com que não entenda o verdadeiro significado da fé. Fé? Sorrio. Uma palavra que começo a desprezar e até a odiar. Fico confuso com tão estranhas sensações, querer ajudar os que precisam e lutar pelo meu desejado e cada vez mais distante destino. Apetece-me fugir, mas a vida goza comigo. É ela que foge com arrogância e desprezo a ponto de querer esquecer tudo e refugiar-me numa torre, não de marfim, mas de ilusões, doces, suaves e coloridas, capaz de pulsar ao som do bater de um pobre coração enlouquecido por ter viver uma vida sem qualquer sentido. Fujo. Apago-me. Silencio-me. Amuralho alguns pensamentos. Os que saem, ainda, pr

Chuva de domingo

Chove num domingo de outono. Sentado, os meus pensamentos sem dono perdem-se no silêncio da minha sala. Olho para o vazio das janelas e sinto uma espécie de frio embrulhado em nuvens escuras a querer ir atrás da chuva que cai sem saber qual o seu destino. Corre na calçada. A chuva não olha para mais nada a não ser a vontade de morrer nos braços de uma ribeira esquecida.

País adiado ou país sem futuro?

Não interessa. É a mesma coisa. Só sei que milhares de concidadãos não são considerados como seres humanos com os direitos inerentes e conquistados por lutas históricas e que honraram em determinados momentos a essência da humanidade. Há uma violação contínua e obscena dos direitos de muitos portugueses, negando-lhes viver com dignidade. Não consigo aceitar esta situação. Eu sei que a violação dos direitos humanos foi uma constante na história da nossa espécie, mas também sei que houve sempre seres humanos que se indignaram contra esse comportamento indigno e humilhante. Não posso aceitar que muitos responsáveis que se alcandoraram voluntariamente a posições politicas capazes de ajudar o próximo não o façam, que não criem condições para menorizar o sofrimento e implementar as condições para resolver as necessidades mais básicas. Muitos usam esses cargos para obterem mais-valias, fomentar tráficos de influência e dar largas ao mais puro e obsceno nepotismo. Não há área politica, ideoló

As palavras não são invejosas

Costumo escrever diretamente no computador. Habituei-me há muito a descrever os meus pensamentos desta forma eletrónica. No entanto, reconheço que, por vezes, tenho necessidade de usar uma folha em branco e uma caneta. Revejo a minha letra e vejo-me a mim próprio. O som da ponta da caneta a correr no papel seduz-me, um encanto que não tem nada a ver com os sons do teclado. O papel absorve como uma esponja o que me vai na alma. É a melhor forma de a limpar ou de a desnudar. As palavras saem com outra cor, com outro sentimento e as letras apresentam-se de forma diferente, umas vezes bem desenhadas, outras não, até parece que ficam desorientadas. Às vezes correm mais depressa do que o próprio pensamento, enquanto outras ficam meio paralisadas sem saberem por onde ir. Olho, risco, leio e passo em frente. Uma vontade febril, quase louca, impele-me a escrever e a ver as imagens que se escondem atrás das palavras que eu vou entretanto pintando, esculpindo, cantando, escondendo, sempre ao s

"Renascer"

Tarde rotineira. Ver trabalhadores, na sua maioria saudáveis ou sem grandes problemas, não é estimulante, apenas justifica a necessidade de cumprir as regras e fomentar a prevenção que tanta falta faz entre nós. Aspeto elegante, solta nos gestos, com um à-vontade construído ao longo de uma vida ainda curta, respondia às perguntas com calma e alguma curiosidade. Vi, perfeitamente, que era uma mulher perspicaz, socialmente reconhecida e culturalmente distinta. Agradou-me a atitude; transbordava simpatia e tranquilidade. Subitamente, fui obrigado a engolir em seco. Tremi e assustei-me. Contou-me que tinha estado de baixa devido a cancro da mama. Os meus olhos saltaram do seu rosto à procura da data do nascimento. Fiz os cálculos sem esforço. Tinha 36 anos de idade e foi operada há pouco mais de um ano. – Também fiz quimioterapia. Disse com um sorriso muito discreto. É natural, pensei. A forma como ia descrevendo os acontecimentos, com calma e muita confiança, mexeu comigo. Confesso que