Morte vestida de branco

A menina partiu em paz e sem dor. A sua memória não. Ficará indissoluvelmente ligada à alma dos seus pais e pairará na mente de muitos que seguiram mais um episódio em que a dignidade humana foi posta em causa. Custa-me imenso qualquer tipo de encarniçamento terapêutico baseado em princípios que estão muito para além do que exige qualquer ser que caia neste mundo e sofra vicissitudes impossíveis de descrever. A vida joga com a morte a todo o instante. No entanto, há circunstâncias em que o respeito pela ceifeira da vida é posto em causa, sobretudo quando são usados meios muito sofisticados com o intuito de manter a "vida" a todo o custo, como se isso fosse uma espécie de conquista. Arrepia-me a dialética que é usada para "explicar" os casos gravíssimos em que não há qualquer possibilidade de reverter a dor, o sofrimento ou uma existência com o mínimo de qualidade de vida. Não consigo compreender o que está subjacente a esta atitude, ou, então, sou obrigado a pensar que a força de uma qualquer ideologia ou doutrina assim o exija para manter o status quo de um poder ou interpretação da vida que ajude os seus defensores a compreender e a aceitar aquilo que o mundo lhes dá ou tira. Assentam os seus argumentos em "leis naturais" ou "leis divinas", como se fossem verdades absolutas e impossíveis de serem postas em causa. Sou mais terreno, mais pragmático, mas, também, sou sensível aos fenómenos do sofrimento e da morte. Nada que impeça de me considerar um humanista. Não invoco as tais "leis divinas", e nem tão pouco os seus "autores", porque nunca consegui compreender os seus objetivos e modo de pensar. Fico-me pela existência. Foco a minha atenção na vida de qualquer um, simples, anónima e que merece sempre o máximo respeito.
Que sentido faz deixar alguém, seja criança, adulto ou velho a vegetar e a sofrer as agruras duma falsa existência, usando meios ultrassofisticados, quando não se vislumbra qualquer retorno à vida minimamente decente e sem sofrimento? Por que razão se luta contra a paz tranquilizadora proporcionada pela morte benfazeja que quer surgir vestida de branco, perfumada de odor a rosas, libertando suaves ondas de nuvens quentes a fim de libertar a alma sofredora aos que invocam regras, leis e outras coisas que se ajustam mais aos interesses da ceifeira vestida de negro e fácies descarnada? Afinal, a morte pode vestir-se de branco e de paz, e a vida de negro e de dor.
A menina espanhola, de seu nome Andrea, que há muito quis dar a mão à morte, conseguiu, finalmente, ir com ela, em paz, sem dor, perfumada e, sobretudo, encantada com a liberdade da morte.
A morte também sabe vestir-se de branco.

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