Domingo

Mais um domingo, mais uma formalidade, mais uma vez cumprimos a rotina criada ao sabor das necessidades alimentares. Antes do almoço, outro ritual foi satisfeito, tomar um café debaixo do sol de inverno. Sentir o sabor de uma boa bebida quente aliado a um certo elanguescer provocado pelo calor coado pelo vidro provoca-me um súbito desejo de querer parar o tempo. Mas não consigo. Olho em redor e as poucas pessoas presentes chamam-me a atenção. Paradas, desinquietas, fácies expressivas de alcoolismo crónico, alguns com cigarros a tremerem em mãos calosas, e outros com sinais evidentes de pelagra, a testemunhar a gravidade da doença, povoam o "meu" pequeno espaço. O dono do café, treinado por visitas anteriores, presenteou-nos com duas chávenas fumegantes. Para não destoar dos restantes, também apresenta estigmas de um bom discípulo de Dionísio, mas sabe atender os clientes, usa sempre uma bandeja e entrega o talão da venda. Curiosamente paga os impostos. Qual será a noção que têm do tempo? Fiquei sem resposta, mas quase que atreveria a dizer que têm uma noção diferente da minha. Imagino-os sem "tempo". Para quê incomodarem-se com coisas triviais? Basta uma bebida a juntar a outra para o tempo parar. Saímos e logo em frente estava o restaurante do domingo, frequentado por gente muito simples, cujos modos e comportamentos emergem das profundezas do tempo. Tenho uma predileção pela forma como falam e se comportam à mesa. Estou sempre atento às conversas, porque revelam formas de ver e de interpretar que me escapam. Ajudam-me a compreender certos fenómenos. Uma das caraterísticas dos meus companheiros de repasto é limpar tudo o que está na mesa e, mesmo que não comam tudo, aproveitam os restos dos pratos e das travessas despejando-os em sacos de plástico que trazem de casa. Um ritual generalizado, exceto no que toca às bebidas. Estas são ingeridas na totalidade, nem uma gota fica nos copos ou nas cântaras. Hoje observei mais uma vez este fenómeno. Compreende-se esta forma de atuar. É uma questão de economia, os restos são levados para casa e dado aos animais. Presumo que não é devido à crise que estamos a viver, mas sim a um princípio muito arreigado nas comunidades rurais, onde tudo se aproveita. Claro que em tempos de crise esta cultura é muito útil, a sabedoria popular ajuda-os, mais facilmente, a contornar os problemas e sem grande angústia. Podem não ser letrados, mas sabem mais de economia do que muitos que eu vejo por aí a ditar soluções e mais soluções, que não me convencem minimamente. No final da refeição, o dono, simpático, que já conhece muitos dos nossos hábitos, perguntou-nos, pela primeira vez, se tínhamos animais em casa, se tivéssemos, dava-nos uns restitos que tinha na cozinha, sim, só se for isso, porque a travessa com a chanfana já estava limpinha, estava mesmo muito boa. Não, não temos, nós já somos "animais" e estamos muito satisfeitos, respondi-lhe.

Comentários

  1. (Des)abafo: há um aspecto que gostava de conseguir entender um dia mais tarde. É, justamente, a associação do “tempo” (dependendo de que “tempo” estejamos a falar) ao “fenómeno”: domingo! Sinto uma espécie de erro comum face ao entendimento de “domingo enquanto dia do descanso” - é que nem por qualquer tipo de fundamentação bíblica (deve ser uma espécie de resolução psíquica para o “efeito do caos”)!!!

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  2. Aos domingos o tempo é mais visível, e, então, as tardes de domingo são as mais dolorosas, as mais deprimentes, talvez devido ao efeito do tempo. Morra o tempo!

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