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Rejuvenescimento da águia!

Apanhei um taxi e, fazendo inveja aos gaiteiros, cheguei à estação com tempo para tudo e mais qualquer coisa. Nunca gostei de brincar com o tempo, temo que me pregue uma partida, mortinho está ele, e sabe que vai conseguir, afinal é apenas uma questão de "tempo". Entrei no bar e escolhi uma sandes, que me pareceu simpática, feita com pão de sementes, negro. Muito apropriado, vai ser o meu almoço, pensei. Ao reentrar na gare, com o saco da merenda, senti um forte cheiro a urina, cheiro que não tinha detetado à entrada. Olho para ver donde poderia provir odor tão desagradável, mas não consegui. Comecei a caminhar ao longo da plataforma e o cheiro, em vez de desaparecer, acentuava-se cada vez mais. Intrigado, pus-me novamente a escrutinar a fonte e nada; eis que, ao olhar para cerca de duas dezenas de metros à minha frente, vislumbro uma mulher esfarrapada, de pele encardida, pernas e pés vigorosamente sujos, saia negra com bainha descida e rasgada. Estava identificado o chafariz. De facto, ao entrar na estação, tinha visto um grupo de mulheres, umas quatro, e um homem, com todas as características de serem sem-abrigos, em deambulações próprias de quem não se interessa por nada, ou, então, por coisas que são apenas dos seus domínios e que escapam à compreensão dos demais. Sem qualquer sombra de dúvida constituem símbolos de decadência da nossa espécie, aparentemente impossibilitados ou rebeldes a qualquer tipo de "rejuvenescimento". Digo rejuvenescimento, em virtude de uma daquelas estranhas histórias que habitualmente correm nas redes sociais ou que entram, sem pedir autorização, nos nossos emails e que querem convencer-nos de que são verdadeiras. Numa dessas mensagens, li uma história sobre a águia que, por volta dos trinta ou quarenta anos de vida, adota um comportamento estranho, vai para um ninho isolado onde esfrega o bico adunco até o arrancar, fica sem comer, aguarda que nasça novo bico, depois arranca as garras pontiagudas, espera pelas novas, e, como não bastasse isto tudo, acaba, também, por arrancar as penas uma a uma até nascerem outras, novas e fresquinhas. A partir daqui está em condições para viver uma segunda vida. Fiquei impressionado com todo este ritual de automutilação e, naturalmente, também muito desconfiado, porque era possível concluir pela leitura que nem todas faziam isto. Que eu saiba a autoflagelação é praticada por alguns seres humanos, por motivos psiquiátricos ou religiosos, ou ambos, mas nos animais é pouco comum, embora já tenha visto um papagaio "neurótico" que devido ao stress passava o dia a depenar-se! Coitado, anos e anos a fio enfiado numa gaiola!
Desconhecia que havia um salmo bíblico que diz: "O senhor faz com que a minha juventude se renove como uma águia". Esta frase ilustra, muito provavelmente, um mito recorrente em muitas civilizações ao longo dos tempos, segundo o qual as águias voam alto, aproximam-se do sol, queimam as penas, começam a arder e depois vêm por aí abaixo em queda livre até mergulharem na água. Durante este processo de queda livre rejuvenescem.
Olho para a mulher. Indiferente a tudo e a todos continua a passear libertando o perfume de uma vida, sem qualquer problema ou constrangimento. Não é uma águia, nem sei se alguma vez terá sido. Presumo que nunca lhe passou pela cabeça "rejuvenescer". Qual será a história dela? Tem que ter uma história, porque se não tiver, então é apenas um anjo caído do céu no inferno da terra. E para os anjos não há mitos que alimentem a esperança de que possam um dia ser devolvidos aos céus.

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