"É português?"

Na sequência de uma troca de galhardetes, um amigo meu tentou justificar as suas afirmações invocando o período das Descobertas, a época áurea de Portugal, em que muitas descobertas se fizeram de improviso, à aventura. Não concordei e avancei com a teoria de que a ciência e a técnica dos judeus sefarditas, aliadas à manhosice dos nossos governantes, é que foram os principais determinantes. Daqui passámos para os judeus. O meu amigo reconheceu que tinham "muito do conhecimento que nos faltava, mas... não possuíam pátria, fomos nós "espertinhos da Silva" que lha demos, em troca do conhecimento que usámos para descobrir os caminhos que facilitaram o comércio que eles sabiam gerir muitíssimo melhor que nós". Esta afirmação levou-me a ripostar dizendo que Portugal também era pátria de muitos judeus e que a religião não deveria ser a condição para impor direitos a ter ou não pátria! Eles consideravam-se portugueses, tanto como os que ficaram, os que mataram e perseguiram homens, mulheres e crianças da Lei da Tábua.
Prometi contar-lhe uma pequenina história, um simples testemunho, que me marcou muito.
No início da década de noventa fui apresentar um trabalho num congresso internacional de Epidemiologia em Jerusalém. À chegada fiquei impressionado pelo número de bandeiras que ornamentavam a entrada do centro de congressos, mais de uma centena de bandeiras. Procurei a de Portugal e encontrei-a. Fui ver quem seriam os responsáveis pela presença da mesma e, por mais voltas que desse, encontrei apenas um português, eu. Fiquei "inchado" pela cortesia, um único português que ia apresentar um trabalho teve direito a que a bandeira do seu país fosse içada. Tudo ia decorrendo normalmente, até que no dia em que se ia discutir os posters, ansioso, cheguei muito cedo à enorme sala. Entrei e não vi ninguém, exceto um militar, baixote, de ventre ligeiramente proeminente, armado, no fundo onde se encontrava o meu trabalho. À medida que me aproximava, reparei que o militar estava junto do poster, como se estivesse à espera do autor. Que raio, mas o que é que faz um homem fardado aqui, pensei. Fui invadido por uma certa ansiedade a que não era estranho o ambiente de Jerusalém. O senhor olhou-me e questionou: É o autor deste trabalho? Disse que sim, mas senti curiosidade, para que é que ele queria saber? Tratava-se de um estudo epidemiológico sobre doencas cardiovasculares. É português? Sou. Sabe porque é que estou aqui? Não respondi, limitei-me a mostrar um ar de surpresa. Sou médico e vim aqui para ver um português. Ver um português!! Que raio de motivo, pensei. Ver um português! Os meus pais são portugueses, descendem de portugueses que tiveram de sair de Portugal há quinhentos anos e em casa falam ladino português e as orações são ditas na língua dos nossos antepassados. Eu já não falo ladino, mas a minha irmã sim, eu apenas rezo na mesma língua. Os meus pais ainda têm a chave da casa de Portugal. Soube que havia um português neste congresso e quis vir ver um compatriota dos meus pais. Ainda conversou mais um pouco e fiquei sem palavras para lhe dizer algo. Uma longa identidade com a pátria que parece ter sido cortada definitivamente com este israelita, que, sinceramente, tinha um fenótipo típico de qualquer português, baixote, pançudito e com umas entradas a denunciar uma futura calvície.
Esta pequena história tem apenas o mérito de contestar uma observação feita por um amigo quando disse que os judeus na altura "não tinham pátria". Claro que tinham e sentiam a "nossa" como o mesmo desvelo que os restantes que por cá ficaram, ou até mais, como é possível que, cinco séculos depois, e estando na sua "pátria", judeus sefarditas ainda se sentissem portugueses?

Comentários

  1. Caro e estimado Amigo; A história que tão amávelmente partilha com os seus leitores, tem o mérito de nos fazer sentir orgulhosos, como povo. É de facto notável, que um descendente de Judeus que nasceram em Portugal à quinhentos anos, ou que, em determinado paço das suas vidas para cá vieram viver, denote um interesse tão grande por alguém, descendente de descendentes, dos homens que fundaram esta nação, tornando-a a sua pátria.
    Não tome, caro Amigo, o significado das minhas palavras como radicalmente antagónico.
    Proponho-lhe um entendimento nesta matéria: concedamos mutuamente, que os Judeus; que chegaram a Portugal muito antes de este ser reino e por cá se mantiveram até a inquisição os perseguir incessantemente, mesmo após a conversão ao catolicismo; fundaram uma pátria, dentro deste reino. O exemplo que nos conta, pode constituir prova de que, essa pátria se mantém viva dentro dos seus corações, mesmo após 5 séculos e a uma distância razoável.
    Que lhe parece?!
    ;)

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  2. Caro amigo

    Eu compreendo o seu alcance. Neste caso posso afirmar o seguinte: pátria é uma coisa e religião é outra. Muitos portugueses esquecem-se de que são ou foram no fim da primeira ou segunda geração. Nesta história, a identidade perdura. Consideravam-se portugueses.

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  3. Todos os povos precisam de um Chão, de um Credo e de uma Língua, com que se identifiquem e onde se reconheçam, caro Amigo.
    O grande axioma do povo Judeu, reside no facto de possuírem mais do que isso, reside no facto de possuirem saberes que os tornaram perigosos aos olhos das pátrias e das religiões onde se estabeleceram.
    E não vamos ser ingénuos ao ponto de acreditar que o inocente povo Judeu, pretendeu, sempre e somente, estabelecer neste solo a sua pátria. E ainda menos que a divina inspiração inquisitória, os expulsou somente por eresia.
    ;)

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