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"Três de copas"


Os homens do mar têm comportamentos interessantes. São mais calmos, introspectivos, possuem olhos profundos, exprimem-se em curtas falas, exceto quando os convidamos a contar histórias, os quais são exímios, quer na forma quer no conteúdo, como se fossem elos de sagas remotas que, conhecedoras das suas fraquezas, se alimentam da sua cortesia para se manterem vivas. Os longos meses passados nas embarcações, trabalho duro, leva-os a adquirir este tipo de conduta, mas também outros, alguns pouco saudáveis. Quando entram no consultório, logo pela manhã, muitos emitem um bom dia enevoado por uma rouquidão tabágica associada ao característico cheiro. Nem lhes pergunto se fumam, passo para as seguintes, há quanto tempo e quantos. Outro aspeto muito comum são as tatuagens, de um modo geral são toscas, mal produzidas, com motivos vários, embora outros apresentem imagens bonitas. Presumo que deverão ser feitas nos curtos períodos de descanso entre o silêncio do mar e o ruído ensurdecedor das máquinas. Três marítimos, de chofre, o primeiro com a laringe enrugada não pelo sol mas pelo tabaco, apresenta um dragão na região do deltóide, um deltóide espesso, duro, a conferir ao animal imaginário uma força descomunal, à espera de um dia transformar-se num dragão decrépito. Nem foi preciso perguntar se era do Futebol Clube do Porto, porque por baixo do bicho lia-se bem, F.C.P.. Sorri. Há gajos para tudo. Va lá, foi feita por um profissional, segundo me disse. Quanto ao tabaco, os conselhos que lhe dei para abandonar deverão ter o mesmo efeito do que pretender apagar a tatuagem com água e sabão. Outro, simpático, mais culto, ocupando um cargo superior, perguntou-me se estava tudo bem, se não havia problemas, eu disse-lhe que havia, olhou-me, mas o quê, o que é que se passa, o senhor teve um enfarte há quatro anos e fuma, não é verdade, é verdade, mas diga-me o que é que se passa, o senhor teve um enfarte há quatro anos e fuma, não é verdade, repeti, sim, via-se a impaciência a crescer, queria saber o que é que se passava, é isso mesmo homem de Deus, o senhor fuma, e quem teve um enfarte não deve fumar. Incrédulo, ainda repetiu mais uma vez a pergunta não querendo acreditar que aquilo que eu considerava como grave era para ele uma coisa sem importância, mas, depois de algumas explicações, profusamente detalhadas, ficou convencido da importância do seu problema de saúde e agradeceu-me muito, efusivamente. Nesse momento não consegui ver qual o grau de satisfação e o sorriso da sereia desenhada no seu peito, mas, pela forma como reagiu, adotando a posição de peito inchado, decerto que a sua imaginada amada também terá sorrido e terá ficado mais tranquila. O terceiro, o mais alto da escala hierárquica, revelou todas as interessantes caraterísticas deste tipo de pessoal, culto, bom contador de histórias, calmo, como convém a quem tenha de tomar decisões e ainda por cima no mar, revelou-se um bom fornecedor de matéria prima para quem gosta de conhecer a natureza humana. Não lhe vislumbrei, à primeira vista, nenhuma tatuagem, mas quando ia auscultá-lo fiquei surpreendido. No peitoral esquerdo também tinha uma! Afinal, este pessoal, mesmo os mais habilitados também têm os mesmos comportamentos. Não resisti e perguntei-lhe o porquê do "três de copas", são as minhas três mulheres, respondeu. Olhei para ele e, atendendo a que era ainda novo, a filha mais nova tinha sete anos, autoquestionei-me como é que iria resolver o problema se tivesse ainda mais um amor, não é que fosse difícil desenhar o "quatro de copas", mas o que é que iria fazer ao "três de copas"?

Comentários

  1. se dermos crédito à voz comum... à voz do povo; aquela que afirma ter um marinheiro, uma mulher em cada porto... então o terceiro, o mais alto na hierarquia do mar, tem o problema resolvido. Basta-lhe mandar fechar as duas bolinhas do 3, transformando-o num oito. Mas... com muito tacto e subtileza, para que não fique ele também... "feito num oito" às mãos das outras 3.
    ;)))

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  2. ahahah!
    os "homens do mar" encontram sempre solução adequada para tudo!
    ;)))

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  3. Mas permita-me: e a resposta – a resposta???

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  4. A resposta? Certas respostas só podem ser dadas perante os acontecimentos e enquanto não ocorrerem nada feito. No entanto, não tenho qualquer dúvida de que seria encontrada uma solução nem que fosse arranjar uma nova explicação para o "três de copas". O ser humano encontra sempre maneira de resolver ou contornar uma situação.

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  5. Li em tempos um estudo em que dizia que a maioria dos tatuados eram pessoas de duvidosa reputação, algumas até com generoso cadastro. Tal afirmação não era desprovida de sentido, pois baseava-se no fato dos tatuados (de então) serem pessoas agressivas e conflituosas.
    Os tempos mudaram, e o que era um estigma nada recomendável, é hoje um bonito adorno do corpo que muitos fazem questão de exibir.
    Gosto de tatuagens, até já estive tentado a fazer uma, mas algo me diz que não são compatíveis com a gravidade…
    Quanto ao 3 de copas, acho que o nosso marinheiro nunca o irá "esfoliar", há-de arranjar maneira de todos os amores aconchegar!

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