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Granito com vida

Certos espaços fazem-me recuar no tempo, no tempo real e no tempo virtual. Vejo-os vezes sem conta e sem contar acabo por fantasiar. Sento-me no carro e olho para a fachada. Bela, sedutora, uma renda de granito que deve ter levado anos a executar. Cheia de símbolos, harmoniosa e esfomeada de sol. Há mais de duzentos anos foi esculpida num granito duro. Pique, pique, pique e as lascas ao soltarem-se iam deixando transparecer uma joia delicada. Imagino os autores, pequenos, magros, tossindo a torto e a direito, não devido ao tabaco, mas ao pó, barbas selvagens, bebendo mistura de vinho e água a partir de cabaças obesas e encardidas, mastigando cebolas com sal, roendo figos secos e comendo pão com toucinho rançoso. A encomenda saía-lhes como água fresca da fonte. Persignavam-se nos momentos certos, rezavam ao sabor do sino e refreavam os seus temores com a benção dos religiosos. Os seus ossos já não devem existir ou, então, já não sabem onde os deixaram, pouco importa, o que interessa é que as suas almas passaram a revestir as superfícies das suas esculturas protegendo-as do mau-olhado e do diabo, sempre pronto a roubar a beleza aos adoradores do supremo. Olho-a e fico encantado. Quantas vezes a vi até este momento? Não sei, muitas, mas cada vez que a vejo sinto uma enorme atração. Hoje vi-a novamente quando o sol do meio-dia aquecia as suas pedras como se fossem corpos de velhos à procura da felicidade, felicidade que só os raios solares são capazes de transmitir nos dias de inverno. Senti a presença de almas sem nome, já tiveram um, mas que se esbateram com o tempo, nem elas se lembram, pouco importa, eu, um dia, também vou esquecer o meu nome; o que interessa é o sentir, uma sensação única em que almas desconhecidas e separadas pelo tempo conseguem irmanar-se numa paz soberana, devolvendo ao sol o dobro de calor e de prazer que nos proporcionou naqueles breves e eternos instantes.

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