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Libertação da alma


Levantou-se de manhã um pouco estranha para o que era habitual. Não conseguiu perceber a razão, mas não ficou preocupada. Levantou-se, esperançada de que algo de bom lhe iria acontecer. Vestiu o belo vestido garrido feito com linhas do arco-íris da adolescência, espantosamente belo e leve. Em seguida buscou o colar de pérolas, pérolas feitas da amargura da sua vida. Colocou-as em redor do pescoço e sentiu algum frio, frio não desagradável, apenas um frio contido a querer testemunhar a transformação do sofrimento num belo enfeite que lhe apetecia ostentar nesse dia. Abriu as janelas de par em par, e uma lufada de ar fresco, a querer adivinhar o nascimento de um dia quente, acariciou o seu rosto tranquilo e o colo que se debatia enigmaticamente com o temperamento do colar. O vestido esvoaçou de contente querendo imitar o arco-íris do qual tinha nascido. Foi então que um suave e silencioso nevoeiro começou a surgir perante os seus olhos como se o mesmo libertasse minúsculas e quentes gotículas, resultantes do confronto entre o calor do seu corpo e o da atmosfera. O nevoeiro volitava de asinha sem saber o que fazer e para onde ir, até que, subitamente, se agigantou numa dança voluptuosa e desconcertante. Não teve receio, uma deliciosa atração inundou-a completamente, obrigando-a a seguir a bela nuvem, suave, doce e serena. Não sabe bem se foi atrás dela ou se foi com ela, afinal era a sua alma a libertar-se. Deixou de sentir frio, deixou de sentir medo, deixou de sentir angústia, deixou de sentir, apenas vivia a alegria da liberdade. E foi atrás dela ou foi com ela. Eu tentei agarrá-la, mas não consegui, porque ninguém pode agarrar uma alma transformada em nevoeiro. Resta-me olhar e recordar...

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