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Falta de homem!

A ingenuidade é uma constante que afeta muitas pessoas. Por vezes fico surpreendido com as interpretações a propósito de algumas doenças ou sintomas.
Há tempos, uma senhora que sofre de disfunção comportamental, nada de grave, acabou por me sugerir que as suas queixas poderiam ser devidas a falta de relações sexuais! Não estava à espera, nem me deu tempo para comentar, adiantando que a atividade sexual, estando “associada” a certas hormonas, acabaria por estimular estas últimas; já tinha lido sobre o assunto! Os seus sintomas poderiam ser explicados desta forma, rematando que, mesmo que fosse o seu caso, não iria procurá-las, uma opção que iria manter. Mais tarde verifiquei que não era bem assim, mas essa é outra história. Pessoa com nível cultural superior, e com filhos já crescidos, saiu da consulta convicta do que acabava de dizer.
Este episódio fez-me recuar muitos anos, quando uma senhora negra, na casa dos trinta e poucos anos, me consultou por causa de dores na coluna. As queixas eram sérias e levou-me a questioná-la sobre a atividade profissional. Confessou que andava a colher ramagens de eucaliptos para serem usadas numa destiladora para obter óleo de eucalipto. Claro que não foi difícil estabelecer um nexo de causalidade entre a atividade profissional, longas horas dobrada, e as queixas. Mas antes que eu lhe explicasse as razões das dores, adiantou a seguinte pergunta: – Oh senhor doutor, acha que é falta de homem? – O quê?! Falta de homem?! Fiquei de boca aberta, porque a forma humilde e sincera com que a senhora fez a pergunta tocou-me sobremaneira. Respondi-lhe que não, mas ao mesmo tempo, curioso, perguntei-lhe a razão de ser de tamanha preocupação. Disse que foram as colegas que lhe explicaram que as dores nas costas eram devidas a falta de homem. A senhora, de tão simples que era, deverá ter sido alvo de chacota por parte das colegas. Mas a forma como me interpelou e aceitou as minhas explicações tiveram o seu quê de emocionante. Mediquei-a de acordo com a situação e temi que, se não melhorasse, as soluções das colegas poderiam levar a melhor.
Passado uns dias cruzei-me com um trator que rebocava um atrelado cheio de ramagens de eucalipto com várias mulheres em cima, todas na galhofa. A minha doente acenou-me toda satisfeita e pela expressão era visível que estava bastante melhor…

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