Realidades

Tive contacto pela primeira vez com a filosofia no decurso do antigo sétimo ano do liceu, o equivalente ao atual décimo segundo. Recordo-me do livro de capas azuis de Augusto Saraiva que servia de base ao estudo da disciplina. Foi um pouco complicado entrar nestas matérias. Comecei com uma jovem professora, bonita, que substituíram, ao fim de algumas semanas, por um ex-seminarista que se interessava mais pelas videiras, em cultivar batatas e a apanhar couves do que propriamente ensinar filosofia. Mesmo assim, agarrava-me ao livro, tentando compreender aqueles conceitos. Não foi nada fácil. Aprendi nomes de alguns filósofos e consegui "apreender" uma ou outra ideia. Nunca mais me esqueci de um, Soren Kierkegaard, não sei se pela estranha sonoridade do nome ou se pelo facto de ler que a realidade é condicionada pela nossa forma de ser e sentir as coisas, o que varia, e muito, de pessoa para pessoa. Um conceito simples e útil para quem não conhecia nada do assunto. Chamaram-lhe existencialista. Gostei da palavra. Nunca li nada sobre o dinamarquês, mas agora deu-me para aí, embora não esteja com vontade nenhuma de ler todos os seus escritos, apenas compreender um pouco melhor o seu pensamento. Ainda tenho algum juízo.

Considero como interessante a escalada da "existência", que, segundo Kierkegaard, abrange três conceitos básicos. Começa pela estética, em seguida passa à ética, terminando no religioso. No primeiro, o ser humano procura o que lhe dê prazer, coisa dos sentidos, do agradável, mas que acaba por se esgotar na melancolia. Em seguida surgem os valores éticos que condicionam a nossa forma de ver as coisas. Por fim mergulha-se no religioso ou no seu equivalente, a espiritualidade, em que o mundo dos sentidos não tem lugar, apenas a vivência espiritual.

O desespero da fase final da estética abre a porta para a seguinte, em que o indivíduo começa a sentir-se responsável pelas suas ações e a respeitar as normas e convenções. No entanto, Soren considera que só através da religiosidade o indivíduo pode encontrar a satisfação existencial plena. Trata-se da religiosidade individual de cada ser, algo que o relacione com o absoluto.

Interessante esta visão do filósofo a que não é estranho o seu comportamento. Desregrado, passou a eticista e terminou em pastor luterano! Esta "ascensão" fez-me lembrar outras individualidades, casos de Santo Agostinho e de frei Gil de Santarém, diabos na juventude, santos na velhice. Como a vida é breve, cumpriram a regra, viver o máximo possível.

O motivo por que abordo este assunto é fácil de explicar. Na vida em geral, e na política em particular, a realidade que cada um quer mostrar aos outros é fruto da interação entre os acontecimentos e a sua forma de estar, de sentir, de olhar, de cheirar e, naturalmente, de pensar. Acontece que, muitas vezes, os outros ficam incomodados, porque têm formas próprias de existência, criando realidades diferentes. Não havendo justaposição das diferentes "realidades" surgem os conflitos. Então, na vida política, é um ver se te avias! Não podemos esquecer que os políticos, de um modo geral, permanecem na fase estética da existência gozando à brava. Analisando-os bem, parece-me que não ficam muito "desesperados" por isso, embora haja alguns que conseguem sentir o peso da responsabilidade ética e viver em conformidade, o que constitui uma subida na escalada da "existência". Tento ver à minha volta se algum já sentiu a necessidade de se relacionar com o "absoluto", mas por mais voltas que dê só se for com o absoluto do poder, do dinheiro e pouco mais. Religiosidade na política? Não. Há, de facto, pessoas ligadas à religião com interesses neste campo, mas isso é outra coisa. A satisfação existencial na política não chega a esta fase. Mas, também, não queria que chegassem tão longe, bastaria que vivessem eticamente, cumprindo com as regras, com as normas, respeitando os outros e contribuindo para a verdade, seja o que esta for. Não o fazendo originam conflitos e incompatibilidades difíceis de resolver.

Ler o prefácio do último livro do Presidente da República para saber quem foi Sócrates não interessa a muitos, mas mesmo assim incomoda as realidades dos apaniguados do ex-primeiro ministro. Quanto ao visado, presumo, pelo simples facto de não responder, que já terá entrado na fase religiosa da existência, passando por cima da fase ética. Às tantas já estudou Kierkergaard!

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