Lembro-me muito bem quando aprendi as estações dos anos. Ninguém me ensinou. Não foi muito difícil, apenas uma questão de tempo. Recordo de nunca ter gostado dos dias curtos e sem sol, porque atalhavam as minhas brincadeiras roubando o meu tempo, tempo de que fui e sou muito cioso. Ainda por cima, muitas vezes, a chuva e o frio doentio aprisionavam-me em casa, desfrutando apenas a liberdade através de um janela fechada e embaciada. Quando me sentia preso, sabia que a culpa era do tempo, tempo que gozava comigo, massacrando-me com particular violência, obrigando-me a beber o fel do tempo que parecia nunca mais querer passar. Passei a odiá-lo. Esquecia essa raiva apenas quando os dias começavam a ganhar tempo em calor e em luz, porque me permitiam brincar até mais tarde, tendo sempre como justificação que ainda se via o sol ou o seu bocejar avermelhado, momento que me encantava particularmente. Nessa altura as pessoas mudavam de cara, riam-se, tornavam-se mais reinadias e passavam a beber mais, talvez por terem mais tempo e mais disposição. As festas irrompiam como vesículas de varicela e todos se coçavam como podiam, mas coçavam-se.
Na altura das festas populares, rituais ancestrais, transmitidos de pais para filhos, cumpriam-se com todo o cuidado e perfeição. A minha primeira cascata de Santo António foi um sucesso. Coloquei o santo com o menino ao colo num trono, rodeado de pedras limpas, musgo, folhinhas, flores e fiz até um pequenino lago na base, abaixo do qual coloquei um pequeno pires de metal para receber as moedinhas. Sentava-me a seu lado no passeio e sempre que alguém passava, entoava, "um tostãozinho para o Santo António, um tostãozinho para o Santo António", mas o que queria não era um tostão, mas sim meia coroa, um escudo e quem sabe se não teria sorte em receber uma valente moeda de prata de vinte e cinco tostões, o que aconteceu algumas vezes quando se aproximava uma pessoa abastada ou familiar próximo. Mas havia alguns que davam apenas um tostão e outras nada. Deixava-as passar e resmungava com eles e, também, com o santo, perguntando-lhe por que é que não tinham dado ao menos uma moedinha de cobre. O santo, calado, limitava-se a sorrir e eu não conseguia irritar-me com ele, embora me apetecesse.
Na altura do São João as coisas eram muito diferentes, mais calor, mais luz, mais alegria e as fogueiras eram uma atração. O crepitar da carqueja e vides a arder, o volutear meio louco das fagulhas e a transfiguração dos rostos, os quais passavam de dourado a vermelho, ao mesmo tempo que os olhos, sobretudo dos mais velhos e mais velhas, se tornavam demasiados brilhantes, como se as almas fossem acometidas de estranhos desejos, desejos, que, na altura, ainda não sentia, mas que começava a desconfiar, fascinavam-me. Saltavam, gritavam, bebiam, provocavam, dançavam, riam às gargalhadas, lançavam olhares de concupiscência e alguns pares aproveitavam a confusão para, no silêncio quente da noite, se enfronharem num recanto mais escuro. Eu gostava de ver os balões iluminados a subir pela ação do calor no céu. Um espetáculo admirável para o qual contribuiu um velho tio meu, que os construía no pátio da casa da minha avó. Com ripinhas de madeira ia construindo o esqueleto em redor do qual colava folhas coloridas de papel. Lindos. À noite acendia as velas e o calor fazia com que subissem todos iluminados. Numa das vezes, acendeu a vela e esperou até que o ar quente começasse a erguê-lo. Ia o balão a subir quando uma rajada de vento o entornou e a chama pegou fogo. Ardeu todinho perante o meu olhar, triste e choroso. Pôs a mão no meu ombro e disse, vais ver que para o ano vou fazer o mais belo balão que nunca ninguém viu até hoje. Esperei ansiosamente que o ano passasse, mas o tempo naquele tempo andava a passo de caracol. No ano seguinte, junto à ponte de pedra da praça, por onde acabei de passar há pouco, um enorme e ultra colorido balão subiu silenciosamente nos céus brilhando com tal beleza que todas as estrelas por momentos se apagaram com inveja. Desapareceu? Não creio, deve ter-se transformado numa estrela. O meu tio, que tinha o mais belo sorriso do mundo piscou-me o olho e disse: - Eu não te tinha prometido? - Tinhas. Obrigado.
Hoje, dia de São João, dia de calor, dia de luz, olhei para o céu e desconfio que o vi...
O dia de S. João também me é caro; pelos motivos que o caro Professor recorda e enumera e também porque é o dia do meu nascimento.
ResponderEliminarEm criança, era um dos dias do ano, que vivia com maior intensidade, pela expectativa dos presentes que me iriam oferecer e porque na rua onde nasci e onde morei alguns anos, acendia-se uma fogueira, prendiam-se balões coloridos e porque naquela noite, os meus pais e os dos meus amigos, autorizavam-nos estar na rua até mais tarde. Em resumo, uma noite sempre para recordar.
;)
Então considere o meu texto como um presente de aniversário. Parabéns
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