Nunca tinha nascido ninguém na terra com aqueles poderes, assustava, enojava, seduzia, confortava e matava, como se tivesse encarnado deus e o diabo no mesmo corpo. Um daqueles casos raros em que as divindades se esbarram ao escolherem determinadas almas. O universo pode ser grande, mas por vezes não evita certos encontros, despropositados ou não sempre são uma forma de fugir à rotina da santidade e do diabólico. Aquela alma lembrou-se de lhes fugir naquela noite quente em que os sentidos, despertados pelo solstício do verão, fazem das suas, a noite que desperta desejos. O diabo sabe atiçá-los como ninguém. Nasceu precisamente no dia da Anunciação, um dia santo, um dia em que não deveria ter nascido. Fê-lo para irritar o diabo e incomodar deus. Riu-se. Sabia que adquiriria poderes, os seus olhos seriam capazes de matar, de causar infortúnio aos que se atrevessem cruzar com ela e não obedecessem à sua vontade. Depois, cresceu irritando e assustando os demais. O medo era mais do que evidente, mas quando a ansiedade, o infortúnio ou a desgraça lhes batiam à porta socorriam-se dos seus poderes e ficavam aliviados e agradecidos, num crescendo de submissão quase que total. Sentiam instintivamente uma aversão àqueles olhos que destilavam maldade, mas os mesmos olhos convidavam que a procurassem para lhes tratar qualquer mal, fosse do corpo ou da alma. Males que não faltavam por aquelas bandas. O andaço reinava na terra. Era tão fácil dominá-los. Bastava cruzar-se com qualquer um e botar os raios de dois olhos talhados na noite de São João. Sentia, como uma égua fogosa, os corações a acelerarem, enquanto as gotas de suor frias e ácidas, ao romperem através de poros nervosos, lhe provocavam sede de prazer. À noite, esperava-os na penumbra da sala, escondendo um gélido sorriso e um enigmático olhar, um pouco mais doce, mais quente, mais esperançoso. Bastava levantá-los naquele preciso momento de silêncio em que o pedido de ajuda se aliava a uma submissão total, e tudo se desfazia como por encanto. Via, como ninguém, o defluxo do mal a escorrer para fora das almas atormentadas e absorvia-o. Um ciclo vicioso sem o qual não conseguia viver. Ao fim de algum tempo, não conseguindo alimentar-se do tormento que causava, nem beber a destilação do mesmo, após fermentação nas almas submissas, pensou em partir à procura de novas experiências, de novas almas, de novos desafios. Não teme qualquer divindade, apenas deseja que a temam. E as pobres almas, incautas, tristes, crédulas, sempre que esbarram nela, abrem-se e deixam-se seduzir pelo seu poder, um poder único, cujos efeitos se somam dia após dia, enfraquecendo-as. Domina-as friamente, fazendo o que quer e quando lhe apetecer. Nada a fazer, a não ser evitar qualquer encontro, porque se nos vir é quase certo que nada de bom irá acontecer...
Tenho que fugir à rotina. A que me persegue corrói-me a alma e destrói a vontade de saborear o sol e de me apaixonar pela noite. Tenho que fugir à vontade de partilhar o que sinto. Não serve para grande coisa, a não ser para avivar as feridas. Tenho que fugir à vontade de contar o que desejava. Não quero incomodar ninguém. Tenho que fugir de mim próprio. Dói ter que viver com o que escrevo.
A evidência, não dá lugar a comentário, caro Amigo.
ResponderEliminarExcelente texto!
Bartolomeu. Aprecio imenso as suas observações. Se não tivesse mais nenhum leitor acredite que continuaria a escrever com enorme prazer...
EliminarMuito obrigado.
Um abraço amigo