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Despedida da vida


O dia amanheceu coberto de nuvens que lançavam pesadas gotas, frias e cinzentas. O chão esfriou, o calor da terra desapareceu. O dia estava traçado, permitindo adivinhar uma invasão de tristeza. 
Os primeiros que entraram no consultório queixavam-se da vida, mais do que do corpo, queriam falar, queriam curar as maleitas das suas almas. Pequenas tragédias, pequenos desentendimentos, incompreensões acumuladas ao longo do tempo, choques de personalidades, enfim, o trivial da existência, magoa, pesa e angustia qualquer um.
Avisaram-me que uma senhora de idade, acompanhada pela nora e neta, estava à espera da consulta. - Sabe, a filha morreu subitamente este fim de semana em França. Antevi o que se iria passar. Entrou. Depois de descrever o seu historial, e o problema que a vinha afligindo há algum tempo, rompe num choro, passando a contar o drama que estava a viver. Morreu-lhe a filha. Morte súbita. Morte solitária. É difícil desenhar em palavras a experiência da morte de um filho, algo que considero uma iniquidade da existência. Estava à espera do seu corpo. O seu sofrimento entrou-me pelos poros,  rasgando-me em fibras dolorosas, senti a foice da morte, fria e cruel. Partilhei a sua dor, não podia fazer mais. Ao aperceber-se da minha reação, ficou tranquila e agradeceu-me de uma forma que nunca irei esquecer. 
Passado pouco tempo o filho e a neta de um senhora idosa e acamada, que nunca vi, vieram pedir ajuda para que os pudesse ajudar e orientar. Tinha andado em bolandas nos serviços de urgência. Com base nos elementos que forneceram, e na história da situação da senhora, não me foi difícil perceber que tinha entrado na reta final. Estão a cuidar da senhora em casa como muito amor e carinho. Cuidadores de excelência. Depois de os ouvir expliquei-lhes que o melhor para todos para seria colocá-la num local mais adequado às suas necessidades, porque os cuidados iriam ser cada vez mais exigentes. A morte tinha entrado em cena e era imperioso acompanhá-la, com dignidade e muito respeito. Tinha passado em pouco tempo da morte súbita para a morte anunciada. Ficaram tranquilos, a serenidade invadiu-lhes os rosto. Agradeceram.
Esta estranha sequência de acontecimentos relacionados com a morte teve mais uma protoganista. Desta feita tratou-se de senhora que conheço há muito tempo e a quem ajudei em múltiplos momentos deu entrada. Teve um cancro da mama, mas nunca conseguiu libertar-se do medo da morte. Inculquei-lhe sempre esperança e a certeza de que iria ultrapassar o problema. A morte esteve sempre presente nas suas conversas de forma direta ou indireta. Hoje vi-a um pouco em baixo. Perguntei-lhe por que razão é que estava assim. Faz hoje que fui operada à mama. E depois? Perguntei-lhe. Não lhe disse que tudo iria correr bem? Pois disse, mas não consigo afastar o medo de morrer por causa desta doença. Pronto, não vou falar mais disso. Sorri. Sempre a mesma expressão. A filha também teve um cancro da mama. - Sabe que a minha filha já fez a reconstrução? Já tem mamilo e tudo. Hoje foi ao hospital. Aquela rapariga è tão optimista! - Siga o seu exemplo. Depois da morte súbita e da morte anunciada o medo da morte.
A seguir entra o meu velho amigo que, teimosamente, consegue estar vivo contra todas as expectativas e prognósticos. Falámos. Falámos da morte recente da sua mulher devido a queda. Falámos dos exames que vai fazer para a semana. Apontou para o seu hipocôndrio direito e disse-me: - Esta coisa está cada vez maior! - Claro que está, pensei. Um fígado cheio de mestástases. Levanta a mão direita e com os dedos faz o sinal do medo. Depois com as mãos faz sinal de levantar voo e aponta para o teto, dizendo em linguagem gestual a sua próxima partida. Tentei contrariá-lo, dizendo-lhe que o queria ver muito mais vezes. Mantendo o seu tradicional sorriso, agora triste, deixou derramar duas pesadas gotas frias e cinzentas idênticas às que caiam no exterior. Aproximou-se de mim com os braços levantados. Deu-me um forte abraço,  o mais doloroso dos abraços, o da despedida.
Uma tarde triste, tarde de morte, morte súbita, morte anunciada, medo da morte e despedida da vida. 

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