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"Pois, pois!"

Há dias numa consulta de rotina de medicina do trabalho tive a oportunidade de observar um trabalhador, obeso, de 45 anos de idade, que referenciou um historial de quatro enfartes. - Quatro enfartes? É obra! Exclamei. A sua resposta, acompanhada de um sorriso tipo “pois, pois”, foi a seguinte: - Os médicos dizem que eu tenho um coração muito forte para aguentar quatro enfartes! O exame continuou e perguntei-lhe se tinha sido fumador. Olhou-me, relançando novamente o sorriso “pois, pois”, e, abanando a cabeça, disse que continuava a fumar. Fiquei perplexo e sem palavras. - Mas assim corre riscos muito graves! – Oh senhor doutor já tentei tudo, fui a consultas de desabituação mas não consigo. Da última vez que tive um enfarte foi a própria médica que disse que não valia a pena deixar de fumar, porque senão entrava em stress e era pior. - !?!. Calei-me. No entanto, a reação do trabalhador à minha conduta foi interessante. - O senhor doutor parece que ficou preocupado! – Oh homem estou mesmo perturbado se quer que lhe diga. E ao dizer isto perpassou-me a visão de uma velha, baixa, cabelo descuidado, talvez meio demenciada e viciada no jogo que encontrei um dia no casino da Madeira. No decorrer de uma reunião científica, alguns colegas desafiaram-me para ir com eles. Não sou jogador e fujo do jogo como o diabo da cruz, porque o meu avô assim me ensinou. Não quer dizer que não possa trocar, de vez em quando, uma nota de dez euros em fichas para não ficar pendurado no meio de amigos. Gosto de ver o comportamento de muitos jogadores, alguns perfeitamente alucinados, a puxarem as alavancas ou a carregarem no botão eletrónico. Como seria de esperar, sorte ao jogo não é comigo, porque nem uma ficha caiu a fazer “tlim”. A velhota ao lado chamou-me a atenção pela forma frenética com que jogava. Utilizava um recipiente gigante para pipocas onde tinha ainda algumas fichas De repente, comecei a ouvir “tlim, tlim, tlim”, que nunca mais parava. Encheu o pacote com as fichas, mas como continuavam a cair, colocou-me nas mãos, pedindo para o guardar enquanto ia buscar outro. Fiquei especado à sua espera. Quando voltou, encheu o novo pacote e eu dei-lhe o primeiro. Foi então que lhe disse: - A senhora já ganhou bastante, porque é que não vai para casa? Já é tão tarde! Respondeu-me, ao mesmo tempo que segurava os dois pacotes cheios de fichas colados ao peito, com um enigmático sorriso: - Pois, pois! Fiquei convencido de que ia mesmo, mas, mais tarde, encontrei-a agarrada a outras máquinas. Afinal ainda lá andava. Devia ser a última a sair. A outra recordação tem a ver com o Bertinho, cauteleiro da minha terra, que já morreu. Recordo-me dele desde pequeno. Baixo, emanando um sorriso suave, que nunca largou, adejando as cautelas com a mão esquerda, boné de pala ligeiramente inclinado e um cigarro “permanentemente” colocado entre o indicador e o médio da mão direita. “Deu” por várias vezes a taluda e muitos outros prémios chorudos. Quando me via, tentava impingir-me uma cautela. Dizia-lhe que não tinha sorte ao jogo, que não valia a pena, mas com aquele sorriso acabava por convencer-me. Após o pagamento, os dois dedos, que estrangulavam o cigarro, alçavam a pala do boné que logo tombava num sinal de agradecimento. A primeira vez que o vi sem um cigarro foi quando me consultou. Queixava-se de um quadro de grave défice de circulação arterial dos membros inferiores devido a décadas de consumo de tabaco. Expliquei-lhe a gravidade da situação e o que iria acontecer se não deixasse de fumar. O risco de amputação era uma realidade dramática. Mas também lhe contei que naqueles casos a dependência do tabaco era de tal ordem que, inexplicavelmente, muitos doentes preferiam ficar sem as pernas do que abdicar do hábito! E era verdade, porque já os tinha observado no hospital. – Sabe Bertinho, o senhor nunca me deu a sorte grande, mas eu podia dar-lhe a taluda. Gostava que um dia, quando fosse enterrado, levasse, também, consigo as suas pernas. Passadas umas semanas, apareceu-me a dizer que se sentia muito melhor, não tinha dores e conseguia caminhar normalmente. – Isso quer dizer que já não fuma. – É verdade senhor doutor, o último cigarro fumei-o à porta do seu consultório da última vez. De tempos a tempos via-o com as cautelas na mão esquerda, emanando um sorriso suave e com os dedos indicador e médio da mão direita a estrangularem um cigarro imaginário, ao mesmo tempo que empurravam a pala do boné, que logo de imediato descaía, o seu típico sinal de saudação. Viveu muitos anos e foi enterrado com as pernas. O sorriso suave do Bertinho contrasta com o sorriso “pois, pois” quer da velha do casino, quer do campeão dos quatros enfartes a quem não consegui dar a taluda. Bem gostava...

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