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Mulher de vermelho


Vou a correr, não posso atrasar-me. Uma figura de vermelho saltou do lado esquerdo. Parei. Tratava-se de um cartão recortado em forma de mulher preso a um poste. Fiquei curioso. Tinha uns dizeres. Li-os. Tratava-se de uma iniciativa relativamente ao “Dia internacional para a eliminação da violência contra as mulheres”. Passei a ter tempo, deixei de ter pressa. O cartaz dizia o seguinte: “Foi espancada durante 12 anos... Entre as sequelas com que ficou, conta-se a parcial deficiência de uma das mãos. A sua relação com o marido, quando começaram a viver juntos era normal: “Ele era atencioso, moderado, não imaginava o que se iria passar mais tarde...”
Considerei a denúncia forte e impressionante. Por isso pus-me a refletir sobre o assunto enquanto via passar as pessoas. Duas senhoras, que iam a atravessar a estrada, embicaram diretamente para a figura de vermelho. Começaram a ler mas puseram-se logo a andar. Que raio! Porque é que não leram a pequena história? Continuei parado junto à parede. Mais pessoas passaram pelo local, umas olhavam discretamente, outras, mais curiosas, aproximavam-se, mas quando viam o pequeno cartaz aposto na figura feminina tinham a mesma reação das duas primeiras. O tempo passava e eu apostei que iria desta vez chegar atrasado. Não temia qualquer observação sobre a minha falta de pontualidade e se houvesse tinha uma desculpa, desculpa que seria o mote para atrasar mais as minhas tarefas dissertando sobre a violência doméstica. Olho para a rotunda e vejo nova figura de cartão vermelho com uma folha. O que dirá a folha? Algo sobre a mesma temática, claro. Mas alguém irá lê-la? É muito perigoso entrar numa rotunda muito movimentada para ler o que quer que seja. Eu atrevi-me. Agarrei na máquina fotográfica e fui vê-la com a esperança de não ficar atropelado. Pensei, talvez os automobilistas, ao verem-me com a máquina, tenham algum cuidado e sejam condescendentes com o meu atrevimento.
Li: “O meu marido é violento, egoísta, machão, não sabe dialogar, só grita. Quando ele quer ter relações sexuais comigo, fecho os olhos e depois choro. Depois desses momentos só me apetece desaparecer. Nunca tive o apoio dos meus pais, mesmo sabendo o que ele me faz, consideram-no como filho. Não tenho o apoio de ninguém. Os amigos que tenho são os do meu marido”.
Hoje aprendi mais alguma coisa, coisa que não desconheço, obviamente, mas iniciativas destas são muito importantes e merecem ser lidas e apreciadas.
Relato este pequeno episódio, que não roubou tempo à minha falta de tempo, alimentou a minha angústia face a um fenómeno aterrador, para que os leitores parem um bocadinho e leiam, leiam os conteúdos de duas pequenas histórias, mas leiam até ao fim..

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