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Ninfas

Cheguei cedo. O sol devia estar a sonhar. Brilhava intensamente mas não aquecia. Senti um agradável frio embrulhado em feixes de luz. Um contraste que aprecio imenso. Pensei, deve ser um sonho do sol, só pode. Quando acordou, tarde, redimiu-se, permitindo que pudesse desfrutar uma inesperada vivência, ver nascer um rio. Não é a primeira vez que vejo o local de nascimento de uma artéria da vida. Há algo de misterioso, ver como tudo acontece, ver a vida sair das entranhas das montanhas, de enormes úteros, prontos a lançar os seus frutos. A atmosfera, silenciosa e límpida, acariciava as águas puras, uma pureza singular, num maravilhoso acasalamento indiferente ao olhar humano. Subi mais um pouco, a água desapareceu, mas a calçada, bem desenhada, povoada de pedras vestidas de veludo verde, indicava para a vaginal entrada da montanha. Estava misteriosamente fechada, aguardando o momento voluptuoso de um orgasmo da natureza, em que ninfas sedutoras emergem para correr alegremente saltando de pedra em pedra até se misturar com as águas gémeas. Estavam escondidas. Ouvi-as, estavam muito divertidas. Andei ao longo do rio convicto de que um dia irei observá-las correndo como loucas em toda a sua nudez. O sol, que tinha acordado meio estremunhado, empurrou-me para locais belos e um pouco inacessíveis. Esbarro numa habitação em que um belo painel de azulejos, ornado com um sugestivo friso de azeitonas, recordava o aprisionamento do sol. Registei o dito, "Eu dou o azeite brando, Que tempera e que alumia, Eu acendo a luz do dia, Quando a noite vem tombando". Ao lado, a velha ponte escondia as águas do rio recém-nascido que, atrevidamente, fazia rodar com muita dificuldade uma velha e gigante nora. Novo painel de azulejos, no qual se podia ler um belo poema sobre a nora e as suas lágrimas, lágrimas do rio que a nora ia retirando, "Nunca chores junto a nora, Que a corrente faz girar, Quem chora ao pé de quem chora, Fica-se sempre a chorar". O sol do azeite ao misturar-se com as lágrimas do rio, criaram uma atmosfera diferente, menos pura, uma forma diferente de acasalamento, mais humana. O sol acompanhou-me durante o resto da tarde, fazendo despoletar belezas urbanas únicas sempre sob a visão doce das águas do rio. A certo momento, o sol empurrou-me para uma exposição, talvez para que pudesse ver um belo quadro com o sugestivo título "sol de canela". Uma deliciosa vaidade, transmitia luz, calor e um doce aroma de canela. Um sol espiritualizado num amplexo com outros quadros onde cursos de água estilizados corriam na nossa imaginação, um forma de união, estranha, envolvente, de uma pureza espiritual. Um dia diferente, começou com o nascimento de um rio acariciado pela beleza de uma atmosfera atravessada pelos raios brilhantes do sol, mas para o fim da tarde os raios solares emergiam de um quadro sedutor à procura de ninfas desejosas de saborear tamanhos prazeres. Eu ouvi-as, algures no rio, perto, muito perto...

Comentários

  1. Por que lugares mágicos andais passeando a vossa alma e vossos sentidos, caro Amigo?
    Acaso descobristeis uma floresta encantada que só os corações nobres e puros estão autorizados a penetar?
    Ou... andais privando, metafísicamente, com o mais alto vate de todos os tempos?!

    Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego,
    Eu, que cometo, insano e temerário,
    Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
    Por caminho tão árduo, longo e vário!
    Vosso favor invoco, que navego
    Por alto mar, com vento tão contrário
    Que, se não me ajudais, hei grande medo
    Que o meu fraco batel se alague cedo.

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  2. Meu caro amigo. Vale a pena ir às fontes do rio Liz, em Cortes. Uma delícia. Disse-me um amigo que a melhor altura é num dia de sol depois de muitos dias de chuva. Eu quero voltar e ver o que irá surgir...

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