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O pato de ouro...

Para a Suzana Toscano...

Entrei. Já faço parte da casa. Ao longo dos últimos três anos adquiri-lhe muitos objetos, uns mais valiosos, outros nem tanto e alguns sem valor nenhum, mas mesmo sim indutores de belas histórias e reflexões que me deram muito prazer. Um bom pretexto para estimular a imaginação e dar sentido à vida.

- Hoje não tem nada que me interesse? Não tem por aí ao menos alguns papéis velhos? Perguntei-lhe na expectativa de encontrar um bom tema para preencher um belo dia de sol.

- Oh, o negócio está muito mau, não vendo, também não posso comprar, não acha?

- Pois! Tem razão, mas é pena.

Dei uma segunda volta esperançado em encontrar uma velharia qualquer que me preenchesse um vazio, o da criatividade, mas nada. Ao fundo, ouvi-lhe a sua voz de negociante, um timbre visceral a lembrar árabes nos mercados.

- Tenho aqui no armário - sempre o velho armário, verdadeiro poço de belas peças de arte - uma coisa que é capaz de lhe interessar, como soubesse os meus gostos, e sabe, o safado. Atiçado por aquele aviso desliguei-me de tudo e corri na sua direção. Espeta-me nas mãos uma peça de uma beleza fora de comum, um pato em porcelana com penas de metal, sujo, escuro, mas mesmo assim assustadoramente belo. Senti o coração a despegar numa velocidade olímpica. Não escondi o meu interesse. Perguntei-lhe quanto é que queria. Riu-se e adiantou um preço proibitivo, a lembrar os cem ducados do pato de ouro da lenda. O coração travou de imediato. Assustei-me e a desilusão obrigou-o a parar. Parou durante algumas frações de segundo, para ritmar logo de seguida, agora numa triste lentidão a querer testemunhar a renúncia à sua aquisição. Coloquei-o nas suas mãos e fiz o gesto de despedida para fugir à atração de tanta beleza. O safado do negociante, chamou-me, e a rir disse-me:

- Leve-o.

- Por esse preço? É muito caro, mas vale isso, vale sim senhor.

- Então tome-o.

- Mas já lhe disse que é muito caro.

- Eu sei, mas tome-o.

- Mas quanto quer por ele? Quando disse a nova quantia, uma ninharia, disse-lhe:

- O pato vale muito mais do que isso!

- Não sei se vale ou não, eu guardei-o para si, é seu, e só tem de pagar esta quantia.

- Está a falar a sério?

- Estou. Desembolsei a quantia, meramente simbólica, e adquiri uma das mais belas peças. Em casa, com muito carinho limpei as suas penas de metal e um dourado verdadeiramente assombroso ressuscitou debaixo dos meus olhos. O pato de ouro! - Será? Diz a lenda que na cave de um palácio há um pato de ouro que guarda um tesouro. Um dia, um jovem sapateiro, ambicioso e muito pobre, procurou-o. Quando o encontrou, o pato de ouro deu-lhe uma enorme quantia que ele teria de gastar nesse dia adquirindo coisas só para si, e se conseguisse ficaria com o tesouro. O sapateiro pôs-se a gastar e a comprar tudo o que podia e lhe interessava. Mas a quantia era imensa, e quando chegou o fim do dia viu um mendigo cheio de fome. Não resistiu e entregou-lhe o resto das moedas. No momento em que o fez apareceu-lhe o pato de ouro informando-o de que tinha perdido o direito ao tesouro. O jovem sapateiro não se importou e a partir daí, com muito trabalho e esforço, lutou pela vida conquistando o direito à felicidade.

Dizem que são muitos os que procuram o pato de ouro para poderem ficar com o imenso tesouro guardado nas caves de um palácio. Olhei para o pato e vi que era ele. Belo, enigmático, mudo. Não lhe perguntei pelo tesouro. Limpei-o com muito carinho. O brilho dourado das suas penas intensificou a sua beleza. Vou guardá-lo. Garanto que nunca lhe irei perguntar pelo tesouro, basta-me vê-lo, porque para mim passou a ser o "tesouro". Não há nada mais valioso do que a beleza que irradia de uma peça de arte. E como não gastei todas as moedas na sua aquisição...

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