Boa sorte D.


As crianças para entrarem no mundo dos adultos percorrem em primeiro o mundo da fantasia, não sei se para amenizar a frustração do futuro ou se para aprender valores e princípios. O que eu sei é que adoram histórias de príncipes, de princesas, de bruxas más, de fadas, de animais que falam e que são capazes de peripécias e aventuras das mais mirabolantes, mas têm que respeitar uma regra de ouro, terminar sempre bem, do género “casaram e foram felizes para sempre”, em Espanha é um pouco diferente, são mais pragmáticos, "foram felizes e comeram perdizes”.
A vida está muito longe da fantasia, o tempo encarrega-se de o demonstrar.
O rapaz, africano, apareceu na rua, magro, pequeno, demonstrava dificuldades na marcha. Ao fim de algum tempo já sabíamos onde morava, num anexo de uma mansão. Quem era? Um jovem que em criança tinha sido trazido de Luanda, vítima de uma mina, como tantas outras que em Angola foram objeto de uma prática ignóbil. Ficou sem as duas pernas. Foi um colega, ortopedista, que se condoeu com a gravidade da situação. Trouxe-o, tratou-o e, posteriormente, tomou conta dele. Ao fim de alguns anos, o seu protetor morreu prematuramente. O cuidado do africano foi transferido para a "avó", doente e muito carinhosa. "Herdou-o". O jovem ajudava-a e fazia-lhe companhia. A "avó" um dia desapareceu. Foi então que a tragédia se abateu sobre ele. Só e sem meios. Os amigos do bairro iam-lhe dando a mão, fazendo jus ao conceito de caridade, mas, mesmo assim, inúmeros episódios, em que a própria fome chegou a atormentá-lo, são reveladores da miséria que um ser humano pode sofrer. Alguns desses episódios, verdadeiramente dramáticos, mesmo impensáveis, traduzem a falta de nobreza de certos seres humanos. Que fazer? Ajudá-lo, claro. Consegui apoio de um outro colega que o aceitou na sua instituição, passando a trabalhar. Havia e há no jovem um sentido de nobreza e de dignidade que é preciso salientar, e só em situações de muita aflição é que pedia ajuda. Via-se um certo constrangimento que eu prontamente desvalorizava. Ficou sem papéis. Assaltaram-no. Passou a ser um cidadão indocumentado. Necessitava de uma certidão de nascimento. Em Angola ninguém conseguia o documento. A guerra destruiu muitos documentos e a embaixada não resolveu nada. Tinha de ir à origem. O dinheiro, que entretanto ganhou, e que está depositado numa instituição bancária, não pode ser tocado devido à falta de documentação. Por último só lhe restava ir embora.
Há muitos anos conheci uma senhora em Luanda, irmã da minha secretária. Pedi-lhe ajuda e a solidariedade cumpriu-se. Não conheço mais ninguém naquela cidade. O rapaz já tinha onde ficar. Marcada a viagem, regressou ao fim de muitos anos à sua terra natal, a terra que lhe tinha comido as suas pernas. Ao fim da noite telefonou. A satisfação era enorme. A senhora, que foi nomeada recentemente para um elevado cargo no governo angolano, foi esperá-lo ao aeroporto. Foi então que disse, que foi de motorista, segurança e polícia até casa, uma casa luxuosa e vai assinar um contrato de trabalho para poder ganhar a vida. Tive que sorrir. Uma receção digna de um alto dignitário. Está bem, devidamente protegido, em condições quase que diria principescas, sente-se útil e respeitado. Quase que poderia afirmar, um verdadeiro conto de fadas. "Vitória, vitória, assim acabou-se a história". Não sei, mas por agora não posso deixar de manifestar a minha alegria e satisfação. Sempre vale a pena acreditar em fantasias, fantasias que podem transformar-se em inesperadas realidades.
Boa sorte D.

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