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Dignidade


Eu sei que certos assuntos são muito delicados e que podem levantar muita controvérsia e até reações emocionais bastante fortes. O melhor a fazer nestes casos é estar quieto e calado, sempre se evitam algumas complicações ou mal entendidos. Acontece que não sou capaz de estar quieto e calado, por isso tenho que expressar a minha opinião.
Li uma história que me incomodou, mais uma a somar a outras semelhantes, um caso de uma jovem polaca que engravidou após ter sido violada.
A Polónia é um país com uma forte matriz religiosa católica e, nesse contexto, muitas leis são produzidas sob essa orientação e influência, como é o caso do aborto. Mesmo assim, a legislação polaca permite o abortamento no caso de violação. Deste modo, a jovem solicitou a aplicação do seu direito. Aqui começou a sua via-sacra. Foi com a mãe ao hospital da cidade munida do respetivo certificado legal que lhe permitia fazer a interrupção da gravidez. No hospital criaram-lhe inúmeras dificuldades de forma a impedir que conseguisse o seu objetivo. Procuraram outro hospital onde a cena das dificuldades se repetiram. Aqui as coisas ainda foram mais complicadas, o diretor do serviço de ginecologia levou-a a um padre católico sem autorização da mãe e nem da jovem. Médico e padre, numa cumplicidade esquisita, fizeram tudo para demover o desejo da violada. Não conseguiram demover a miúda, e, por este motivo, o ginecologista invocou objeção de consciência. O hospital tomou decisão de publicar a sua nega chegando a ponto de violar aspetos privados da menina. Depois foram para Varsóvia. O hospital passou a receber ameaças dos movimentos antiaborto, assim como a jovem que, também, foi objeto de um ignóbil assédio por parte de ativistas zelosas o que a levou a fugir do hospital. A pobre mãe chegou a ser acusada de ilegalidades pelas ativistas e autoridades polacas. Foi mesmo detida! Entretanto a menor era enviada para um centro de acolhimento de menores na sua cidade Natal. Enfim, uma verdadeira odisseia que terminou em Gdansk para onde mãe e filha conseguiram fugir clandestinamente e onde terminou uma gravidez que legalmente tinha sido autorizada de acordo com as leis daquele país.
Uma jovem duplamente violada, pelos energúmenos que praticaram um ato incompreensível e por alguns dos seus concidadãos que, "fiéis" a certos "princípios", tudo fazem para roubar a dignidade a um ser humano.
Passaram-se quatro anos. Agora, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos condenou a Polónia por violar os direitos de uma menina de catorze anos. Uma sentença dura e exemplar.
Como é possível haver, ainda, nos tempos de hoje atitudes deste género? Atitudes que não respeitam valores, como o respeito e a dignidade humanas, atitudes que querem fazer prevalecerem certos direitos "divinos". Pobre jovem, não sei se irá algum dia recuperar do trauma da violação, mas se conseguir, espero sinceramente que sim, nunca irá recuperar da violência dos grupos ativistas antiaborto.
Poderia estar calado? Poderia, mas não consigo.

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