Jogo


Em pequeno, de vez em quando, o meu avô entregava-me um envelope com dinheiro para ir à casa do Sr. V. pagar a renda do edifício. Não era muito longe e sentia que me era confiada uma grande responsabilidade. Fazia o que me mandava. Batia à porta, subia a longa escadaria e cumprimentava as senhoras muito educadamente, as quais se metiam comigo, dando-me bolachas, um precioso pedaço de bolo ou uma fatia de pão barrada com uma espessa e muito saborosa marmelada. Ao fim de algum tempo, o carrancudo e antipático senhorio, sem um sorriso e sem duas palavras, entregava-me o recibo e emitia um grunhido, toma, e eu abalava pelas escadas abaixo o mais rapidamente possível. Que besta! Numa altura, estava a receber novamente o envelope para entregar ao senhor, desabafei com o meu avô, dizendo-lhe que o senhor era muito antipático e por isso preferia não ir. Ele riu-se e confirmou que também não gostava nada de o ver ou de o ouvir, porque tinha feito uma coisa muito feia. O que é que ele fez? Tu és ainda pequeno para perceberes certas coisas. Vai lá entregar o dinheiro ao homem. Não insisti. Disse-lhe: está bem. Antes de sair pela varanda da cozinha ouvi-o comentar com a minha avó o meu desagrado. O miúdo não gosta do V. E tem toda a razão, o homem é um verdadeiro animal, jogar a mulher ao jogo! Perdeu-a. Como a conversa estava a tornar-se aliciante, pus-me à coca por detrás da porta da cozinha e ouvi tudo. Eu já sabia o que era jogar, jogava à bisca dos três e ao burro em pé, e também sabia que havia pessoas que jogavam a dinheiro. Eu não, nem a feijões! Parece que o homem que a ganhou não foi reclamá-la, mas a história propagou-se. Um ato humilhante. Nesse dia, em que soube da história e dos seus pormenores, subi as escadas com apreensão. Estava determinado em olhar para a senhora que foi jogada numa partida qualquer e que mudou de "dono". Uma senhora triste que nunca abandonou o sorriso quando me mimoseava com bolachas ou com um generoso naco de bolo. Nesse dia o senhor não estava e a mulher ficou de enviar o recibo ao meu avô. Senti um alívio ao saber que não iria ver o jogador que apostou a mulher. Curiosamente nunca mais o vi, porque passado algum tempo a roleta da morte premiou-o.
Um dia comentei a história com o meu avô que ficou muito surpreendido. Olhou para mim durante algum tempo sem dizer uma palavra, uma atitude assustadora. Vi, perfeitamente, que estava tentado a comentar qualquer coisa, mas só disse: um dia vou-te dizer uma coisa muito importante a propósito do jogo. E assim foi, mais tarde, quando a rapaziada meio espigadota queria começar a jogar com certo atrevimento, e alguns já o faziam, jogando à lerpa, ouvi um sermão preventivo. Lembras-te do senhor V., aquele que perdeu a mulher ao jogo? Acontece apenas aos que se viciam no jogo, ficam de tal modo apanhados que fazem tudo, até jogar a própria mulher ou, então, acabam na miséria. Ia dizendo tudo isto a subir a escadas íngremes, o que já fazia com alguma dificuldade. Ao chegar ao topo, virou-se e disse solenemente: nunca te esqueças do que te vou dizer: "um homem que é homem nunca joga a dinheiro". Arrepiei-me. Repetiu mais uma vez a frase virando-me as costas no topo das escadas. Lembro-me ter balbuciado qualquer coisa, mas tive de fugir imediatamente para o jardim com uma estranha sensação de culpa, apesar de nunca ter jogado a dinheiro. Depois, com o tempo, "vi", e bem, as consequências do jogo. Um horror, uma das piores toxicomanias a relembrar a heroína ou a cocaína, só que é legal. E continua, sob a proteção e provocação dos responsáveis. Algo que merece ser estudado e travado, mas não vejo como.
Mark Twain dizia que há duas situações em que não se deve jogar, quando não se tem dinheiro e quando se tem...

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