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Mensagens

Dor

A sensação de frio leva-me a pensar nos que sofrem um outro tipo de frio, são as almas doentes e esfarrapadas que fogem da vida tristes e desesperadas. As notícias atingem-me como punhais. É raro o dia que tal não aconteça. São tantas que até parecem fazer parte de um exército empurrado pelas mãos de Deus para o regaço quente do Diabo. O que leva uma mãe a matar o seu filho e depois a suicidar-se? Pode estar doente e pode sentir-se desesperada por viver num mundo em que a selvajaria humana impera sob capas coloridas de hipocrisia e a solidariedade não é mais do que uma construção momentânea que tranquiliza sobretudo as mentes de muitos que se arvoram em fiéis de princípios, religiões e doutrinas ditas humaníssimas. E agora? Durante alguns dias haverá sempre alguém que comentará o sucedido. É o que estou a fazer neste momento, lamentando tamanha tragédia. Uma notícia dura três dias, sendo sucedida por outra tão violenta e chocante com esta. São tantas, demasiadas, a ponto de saturar o

São Pancrácio

Fiquei surpreendido ao saber que nalguns bares espanhóis começa a ser usual haver uma imagem de São Pancrácio. Dizem que é para pedir sorte ao jogo. Jogos sociais e jogos de azar estão ligados a uma figura que não tem nada a ver com o jogo. De facto, o pobre Pancrácio, pobre porque o decapitaram por ser cristão, era rico. Herdou uma grande fortuna e enriqueceu ainda mais quando foi para Roma pela mão do seu tio protetor. O imperador Dicocleciano tentou que o jovem abjurasse a sua religião, mas não conseguiu. Além disso também não apreciou muito o facto de andar a distribuir a sua riqueza pelos pobres da cidade. Resultado? Uma cabeça a menos e um santo a mais. Depois o tempo encarregou-se do resto. A lenda cresceu, frutificou, e Pancrácio tornou-se no arauto da sorte. Sorte ao jogo, sorte ao trabalho para quem não tem e sorte na saúde. O santo porta um livro aberto onde se pode ler "Veni ad me et ego dabo vobis omnia bona" (Vinde a mim e eu darei todos os bens). Uma frase bíbl

Física

Não estou arrependido do percurso que fiz ao longo da vida. Mas se me perguntassem agora se gostaria de ter seguido outra via responderia que sim. Qual? Pois bem, adoraria ter sido físico. Nada melhor do que a física para compreender o mundo e o homem. Sempre que posso, e as minhas capacidades o permitem, leio e delicio-me com os pensamentos, especulações e conclusões dos físicos. Um físico é o mais perfeito dos filósofos, lida com a realidade, com as leis do universo, com o passado, com o futuro e dá significado ao presente sob a forma da mais bela poesia. É difícil encontrar outro campo do conhecimento capaz de tamanhos efeitos. No fundo, não posso dizer que é algo de novo, sempre tive essa impressão desde muito novo, mas fui "empurrado" pela vida e por outros gostos também não desprezíveis e capazes de explicar o homem nas suas múltiplas vertentes, em que a dor e o sofrimento são senhores e reis das nossas pobres existências. Devoro o que consigo entender e apreender atr

Citações

Lembro-me de ouvir há muitos anos, na abertura de um simpósio, o discurso de uma autoridade. O senhor era vaidoso e, sobretudo, pretensioso. Não foi difícil fazer o diagnóstico ao fim de algum tempo. Ainda não tinham passado cinco minutos e já tinha bombardeado a audiência com mais de uma dezena de citações. Abri a boca de espanto porque calculei que àquele ritmo iria sofrer a maior saraivada de "eloquência" da minha vida. E assim foi. Nunca vi até hoje algo semelhante. Não fiz grandes comentários nos intervalos, mas mesmo assim larguei uma ou outra frase a testemunhar um certo grau de indignação, recordando um comentário que tinha ouvido há algum tempo, mas sem conseguir citar o autor. Esqueci-me do seu nome, felizmente! Nunca mais larguei uma frase cheia de sabedoria, "a eloquência de um orador é inversamente proporcional ao número de citações". Se houver necessidade de as usar, por motivos de continuidade de um discurso ou realce de um conceito, então, podemos so

O cantor

O suave ondular das pessoas nas ruas enfeitadas, a confirmar a época festiva, que se arrasta durante alguns dias vestida de frio e de nova esperança, dá vida e consola os que procuram o tempo de paz. Nada melhor do que o sentir do mundo ouvindo cantares dispersos que enchem o ar de flocos de alegria. O velho, descoberto, calva luzidia e indiferente ao frio, retirou de um carrinho de compras um pequeno Pai Natal a pilhas que começou logo a cumprimentar as pessoas que passavam. O pequeno sistema sonoro com altifalante incorporado, que colocou junto à traquitana, e um microfone, denunciavam estar perante um eventual artista de rua. Será? Fiquei cheio de curiosidade. O que é que vai sair daqui? Uma pequena caixa recoberta de papel de embrulho com motivos natalícios ficou ao lado do minúsculo Pai Natal que não se cansava de cumprimentar. Enquanto ia distribuindo o seu material no passeio em frente da loja fechada começou a cantar. A sua  voz, longe de ter sido treinada, com sabor a idade, c

Ano novo

Nem só de pão vive o homem. Também vive de festas e de alegrias. Usa todos os pretextos para se divertir. Foi o que aconteceu com a passagem do ano. Por todo o mundo ocorreram inúmeras festividades que foram relatadas até à exaustão. Assisti a tudo sentado confortavelmente no meu sofá e no silêncio de uma paz construída à força. A passagem do ano é um fenómeno que entendo como uma forma de acreditar que o que é novo é diferente, mais feliz, mais pacífico, menos tormentoso do que foram os precedentes. Um ato de fé laico que a grande maioria partilha. Pessoalmente não me seduz tamanha festividade, talvez por uma questão de feitio ou devido ao acumular de lembranças que me obrigam a recordar o passado e pessoas que deixei de ver. Na noite de passagem do ano os noticiários esquecem-se de relatar a tristeza e a miséria de muitos que devem olhar para o novo ano como a imagem do que já passou. Fazer crer que tudo irá mudar é uma mera questão de fé. A lotaria da vida irá sortear alguns ou mal

Pecados

Acompanho como qualquer cidadão a vida e os comportamentos dos papas e das altas autoridades religiosas. Aprecio o conteúdo dos seus discursos, simples e fáceis de prever. Prédicas que se repetem amiúde. Em grande parte dos casos tentam ajustar-se às novas/velhas realidades sociais invocando o nome de Deus e a sua infinita bondade. Como é que fazem? Habitualmente pedindo perdão por acontecimentos do passado e que, não obstante a passagem do tempo, continuam a manchar as suas missões. Além de pedirem perdão também concedem perdão aos pecadores. Depois, noutros casos, aparentemente complicados para a filosofia que defendem, tentam abrir as portas concedendo alguma "coisa" que, com o tempo, terão de ser aceites. Tem de ser devagarinho para não causar grandes transtornos à organização. No entanto, há um aspeto interessante que merece ser realçado. De quando em vez declara-se um ano "jubileu", e à sua sombra são concedidos perdões aos pecadores. É como colocar o "co

Desconfiar

Causa-me imenso transtorno ver o que se passa em certos setores da nossa sociedade. O caso da banca é paradigmático. Como é possível ter caído numa sucessão de crises em que a falta de respeito e de confiança passaram a ser a sua imagem de marca? A banca é useira e vezeira em convencer muitos depositantes a escolher determinados produtos que "são" muito mais rentáveis do que os tradicionais e "seguros" (?) depósitos. O senhor, de idade, foi ao banco buscar aquilo que julgava ser seu. Não trouxe nada, porque tinha investido em obrigações e outras "coisas" que lhe foram sugeridas pelos funcionários do banco. Disseram-lhe que rendia mais e que de seis em seis meses receberia juros sem problemas; o dinheiro estava seguro. Sorri com tristeza, porque induzir um idoso é muito fácil. Basta colocar gente bem-falante, e devidamente treinada, sempre de gravata ou, no caso de ser uma senhora, saia e blusa bem combinadas, aspeto bem cuidado, e que, por cima, trabalha

"Raspadinhos"

Observo sem surpresa os "investimentos" nos jogos da Santa Casa da Misericórdia. Um balúrdio! Fiquei também a saber que os portugueses começaram a gastar mais na "raspadinha" do que no euromilhões. Ganha-se menos, mas ao menos sabem logo se vão ter prémio ou não. No caso dos prémios pequenos são de imediato gastos em mais raspadinhas. Não sei se não iremos assistir a uma nova patologia, não profissional, mas lúdica, a "tendinite da raspadinha". Chega a ser epidémico e muito preocupante o número de pessoas que, freneticamente, raspam, raspam, para ganhar uns euros que são logo investidos em mais cartões. No final poucos irão obter lucros. Quem ganha é a Santa Casa que lá vai dando um ou outro prémio mais "chorudo" para reforçar a ideia de que consegue fazer feliz alguns portugueses. Não estou certo disso, pelo contrário, despendem as parcas economias e caem no desejo de jogar cada vez mais, viciando-se. É muito fácil ficar dependente de qualquer j

Cinzento

Dominar o cinzento dos dias que deviam ser festivos é lutar contra a força selvagem e dominadora da vida. Não é fácil. Dói. Mesmo que queira socorrer das mais belas cores da imaginária palete, que transposto escondida no fundo da minha alma, ao tocar-lhes consigo transformar os mais quentes, sedutores e inspiradores tons no mais vulgar e ordinário cinzento, capaz de pintar as imagens da tristeza e do medo que me perseguem em certos momentos da vida. Hoje foi um desses dias. Hoje? Não! São vários os dias que me atormentam numa repetição cíclica a querer recordar que tudo gira em volta de um ponto. Tento esquecer, faço por fingir e aguardo ansiosamente o partir da angústia e do medo. Desenho quadros e vivo com intensidade o passado como a querer esconjurar o medo do futuro. Depois o medo adormece. É o momento em que as recordações desenhadas com tristeza surgem com estranha beleza; suaves, coloridas e desejadas sob o novo sentir. Tenho pena de não as ter vivido no momento certo. Pinto a

Imaginar

Correr lugares já conhecidos permite saborear velhos gostos, tempos e momentos. Faço-o com alguma frequência. Cruzo a minha vida com a de outros dos quais apenas reconheço que são portadores da essência da vida. Não sei o que pensam e quem são. Movem-se e olham em redor no momento em que passo. São pessoas obrigadas a viver e a partilhar os seus sentires. Ponho-me a imaginar quem são. Provavelmente o meu pensar não coincide com a realidade. Não importa, ficcionar é a forma mais elegante de construir a realidade desejada e não a esperada. Aprendo muito. Reconheço a minha permanente forma de tentar compreender pequenos gestos, breves acontecimentos e o circular de sentimentos anónimos e ricos em sabedoria perdida como sendo a fonte da água da verdadeira vida. Deslumbrei-me com a velha capela conhecida e consegui ver numa perspetiva diferente o arco da sua torre sineira. Vi a varanda de madeira, a fonte real, os velhos solares, os templos de muitas vidas e de muitas mais lembranças, velh

Incomodar

Aceito as opiniões de quem discorda do que escrevo. Não é difícil. Aceito não por causa dos argumentos, pobres, deficientes, tendenciosos e reveladores de uma incapacidade em compreender as diferentes visões do mundo, mas por serem manifestações naturais de seres vivos presos a preconceitos e convicções. Só não consigo compreender é a razão porque me leem, a não ser porque seja capaz de incomodar. Incomodar não é o mais importante, o que importa é tolerar, respeitar e saber amar.

Paredes velhas

O quadro está à minha frente. Nasceu de uma lembrança, navegou numa mensagem e chegou ao conhecimento do artista. Deve-lhe ter despertado recordações e emoções em rápidas viagens de saudade ao seu passado. Não nasceu apenas das mãos do autor, surgiu da sua memória. Imagino que naquele espaço tenha sentido e vivido o que nunca mais irá sentir, ver, saborear, tocar ou olhar. A luz da manhã entraria pela janela que se fechava para o espaço envolvente enquanto se abria para a sua mente. O sol já apareceu e bateu-lhe como nos outros tempos. As cores sujas das paredes acentuaram-se durante alguns momentos como se estivesse a sorrir. O branco emergiu limpo e o amarelado intensificou-se como se fosse a cor do sol. Até o cinzento-escuro provocado pela humidade e a passagem do tempo adquiriu vida. As paredes velhas a meias com duas figuras humanas testemunham a presença de almas naquele espaço aparentemente perdido e cheio de encanto. Aves sobrevoam. Os quadros não falam mas obrigam a sentir

Migalhas doces

Assusta-me viver. À medida que o tempo rebola no universo sem fim, sinto cada vez mais vontade de saborear pequenas gotas ou migalhas doces de vidas que ainda se desenrolam perante mim. É o que faço diariamente. Encontro, ouço, vejo e sinto que o viver dos outros, seres que nunca vi, encerram em si o segredo da vida. Pequenas frases e olhares subtis explicam mais do que todas as palavras, tratados, poesias ou lições que já li ou estudei. No segredo do anonimato de uma curta conversa ou breve encontro acabo por me encontrar. Ninguém mais sabe. Não importa, outros, como eu, devem sentir o mesmo; o segredo é saber saborear a presença de alguém que sabe partilhar a poesia da vida. Simples, fugaz, profundo, colorido, sentido e tão esquecido. Não há dia que Deus bote ao mundo que não encontre alguém desconhecido que me ajude a viver. Viver assusta. No entanto, as vidas de pessoas anónimas, simples e esquecidas fazem lembrar as inúmeras espécies de flores silvestres que aparecem a qualquer m

Arte

Portugal sofre uma profunda crise. Não é a primeira vez que acontece. Ciclicamente renova a miséria como se fosse o fatal destino traçado por deuses imbecis ou embriagados. Nunca compreendi muito bem a razão de ser de tanta pobreza amancebada com a sua eterna amante, a tristeza. Por vezes enlouquece. São breves momentos em que uma efémera riqueza alucina um povo que passa a sonhar acordado. Depois, o sono da morte obriga-o a ter de sofrer a dor da ausência e a beber os dias cinzentos em que o sol da esperança se ausenta, deixando atrás de si a fome e o amargo desejo de se afogar na violência do tempo e do esquecimento. Vivi todos os tipos de tempos que Portugal já viveu. Todos, ou quase todos, concentrados num curto período de tempo, a minha existência. Cansa? Sim. Desgosta? Sim. Cansa e é fonte de amargura para quem foi ensinado a tentar gostar da vida. Ainda não consegui gostar verdadeiramente. No entanto, por breves instantes, sou capaz de vislumbrar a beleza da vida. Como? Atravé