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"Apanhado da Lua"

Há certas pessoas com as quais não simpatizamos, e não é por motivos preconceituosos, mas sim devido a determinados fenómenos muito complexos a que não é estranho certas estruturas cerebrais que conseguem "ler" sinais de perigo que nos escapam de forma consciente. O senhor entra e dispara: Você tem de resolver este problema, eu não posso continuar assim. Nem boa tarde, nem senhor doutor, nem nada."Você", uma palavra que me irrita sobremaneira. Nem me deixou perguntar o que é que se passava, embora não me fosse difícil descortinar qual o problema, porque já o tinha consultado em tempos. Olhe lá, então a medicina não consegue ver o que se passa no meu estômago sem ter necessidade de fazer uma endoscopia? Que raio de medicina é a vossa, tão desenvolvida, tão desenvolvida e não tem uma alternativa! O registo do discurso foi sempre no mesmo sentido, desprezo e tentativa de humilhação da profissão. Tive de colocar a minha cara número um, a mais solene possível, usando todos os cuidados para não ter de responder à maneira, e eu sabia o que é que ele merecia. Um doente arrogante, doente, mas, também, um perfeito chato.
Este caso fez-me recordar outros em que o sucesso acabou por ser atribuído a bruxas, graças ao conselho de uma comadre, a santos e à Nossa Senhora de Fátima, estes últimos são pagos em estearina, peregrinações e ex-votos, enquanto o insucesso é invariavelmente culpa do médico. Mesmo nos dias de hoje, a superstição, as crenças populares e a "medicina popular" estão enraizadas nas almas dos portugueses. Quantas e quantas histórias poderiam documentar esta afirmação!
A conversa continuou e não me foi difícil perceber, até porque já tinha outras histórias, que o doente em questão já deveria ser assim desde há muito, às tantas desde criança. Ainda estive tentado a perguntar-lhe se a mãe por azar não o terá mostrado à Lua, porque uma criança apanhada da Lua é triste, não tem robustez, nem vigor e acaba num chato de primeira apanha. Porra, porque é que a mãe não lhe espetou na boca quando nasceu a loquinha, uma preparação de mel e gema de ovo. O mel tem a virtude de as tornar segredeiras e a gema de ovo, engraçadas. Resta referir que o indivíduo não tem graça nenhuma, foi mal talhado, só pode e eu tenho de o aturar. Valha-me Santo António ou a Nossa Senhora, mas não querem nada comigo, tomara, eles lá têm as suas razões, bem podiam tratá-lo e ficarem com todos os louros, eu até pagava por cima, mas qual quê! Farto, mas mesmo farto da conversa, disse-lhe: Olhe, o melhor é tomar isto, uma cápsula ao deitar, enquanto não se decidir a fazer o exame ou até o senhor descobrir um outro que o substitua, está bem? Que raio de prescrição está a fazer, a minha médica(!) diz-me que este medicamento só se deve tomar de manhã, "vocês" não se entendem, pois não? Um estranho fervor começou a queimar todos os pontos do meu corpo, a ponto de ficar à beira de uma erupção vulcânica tipo piroclástica. Tive que dizer que não discutia critérios clínicos com ele, só com um colega. Nem sei como consegui aguentar tamanha desfaçatez e humilhações. O senhor não é destituído, é apenas um aluado, só pode ser, mas por que carga de trabalhos não vai à bruxa, a um homeopata ou a um santo qualquer da sua devoção?

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