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Entrada em cena!

Para o meu amigo Dr. Tavares Moreira

Somos marcados por pequenos acontecimentos ao longo da vida, que, ao fim de muitos anos, emergem mais ou menos desfocados sempre que pretendemos explicar por que razão pensamos ou atuamos de certa maneira ou, então, quando alguém se lembra de lançar uma simpática provocação. Não deixa de ser agradável recordá-los porque permitem construir histórias, as quais, por sua vez, podem modificar a forma de pensar de outros. No dia em que cheguei à Assembleia da República, em 2002, sentia-me inquieto, um pouco confuso, mas suficientemente em estado de alerta a fim de absorver tudo o que podia de modo a não fazer má figura, coisa que passei a assistir com certa regularidade passado algum tempo. No primeiro dia, ao entrar no hemiciclo, não sabia onde devia sentar-me. Escolhi um sítio que fosse o mais central possível e numa fila discreta, salvo erro a quarta. Razão da escolha? Ter o mais amplo campo de visão que me permitisse observar com cuidado o comportamento dos outros. Não vou explicar com muitos pormenores o meu "desporto" favorito desde os meus tempos de banco da universidade, mas foi tiro e queda. Nunca mais o abandonei. Feita a chamada, como no primeiro dia da escola, levantei-me e andei à procura de conhecidos que praticamente se limitavam aos candidatos do meu círculo eleitoral, mas nem esses consegui cativá-los, estavam envolvidos em amenas ou altas cavaqueiras. Que chatice, pensei, o que é que estou a fazer aqui. Outros, estavam, também, na mesma situação, o que não era difícil de concluir pelas expressões faciais. Os veteranos, face à quantidade de novatos, deveriam estar a divertir-se. Um deles, Mota Amaral, que foi fácil de identificar, via-se perfeitamente que estava em perfeito deleite. A menos de duas cabeças ouvi-o a dizer, ena, tantas caras novas, parecem mesmo uns caloiros, e olhava para cada um, e cada uma, como que a marcá-los para poder identificá-los no futuro. Caloiro? Agora só me falta ser praxado por este tipo, estou bem arranjado, pensei, mete-te comigo, mete-te, que eu desafio-te para a pancada; como se fazia no meu tempo de caloiro ao chefe da trupe quando éramos apanhados, não é que valesse muito, levámos porrada e ficávamos sem o cabelo na mesma, mas instintos são instintos, quer seja na universidade ou no parlamento.
Mota Amaral foi eleito presidente da Assembleia da República, cargo que deveria ambicionar e para o qual sentia que tinha competência. Perfeitamente natural, pensei, atendendo ao seu passado e forma de ser e de estar. Na sessão em que ocorreu a transmissão de poderes, estive sempre de olho atento no açoriano. Evitou manifestar a sua felicidade, mantendo uma atitude nobre, mas eu "senti" o seu enorme prazer em concretizar o sonho. Mota Amaral refugiou-se na última fila precisamente em frente do segundo corredor à esquerda do principal (para quem está sentado) literalmente enterrado no cadeirão, como se quisesse esconder dos olhos de todos os deputados. Interessante, pensei, o homem está à espera de entrar em cena. Assim foi, logo que foi anunciado o novo presidente, parecia um felino a saltar do cadeirão emergindo como uma estrela, só faltou os holofotes a iluminar-lhe a descida e depois a subida ao altar da igreja da democracia, como se estivesse a ouvir a nona sinfonia, e devia estar, porque o seu discurso teve-a como mote e fonte inspiradora. Via e lia-lhe na alma uma alegria e tamanha satisfação que nem a mais feliz das crianças algum dia terá sentido. Tinha alcançado o seu sonho, sentiu que lhe era devido e que tinha perfil para o cargo. Depois, apesar de termos tido algumas e profundas divergências em determinadas áreas, acabei por o conhecer melhor, um homem de bem, devidamente preparado, politicamente ativo, que sabia conduzir a assembleia com proficiência e elegância o que não impedia que, por vezes, destilasse algumas tiradas humorísticas. E que tiradas!
Um pequeno apontamento sobre um político que me marcou. Mas houve muitos outros.

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