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Conversa arqueológica

Entrou no gabinete com determinação, denotando alguma expectativa, sem conseguir esconder um ar inquiridor misturado com uma beleza natural e uma tonicidade física de pessoa saudável. Após as formalidades habituais, indispensáveis a uma relação equilibrada, perguntei-lhe em que é que ia trabalhar, respondeu-me, vender aço. Vender aço? Sim. É o primeiro emprego? Não! Sou arqueóloga. Arqueóloga? Foi o suficiente para adiar o exame e passei ao ataque, perguntando-lhe onde é que tinha trabalhado. Confessou-me que trabalhou durante sete anos em muitos sítios e passou a descrevê-los. Como sou um curioso empedernido ia-lhe dando lastro, vendo perfeitamente que a menina estava a gostar do meu interrogatório. Perguntei-lhe quais as descobertas que fez, quais as que lhe deram mais satisfação, o que originou ondas de respostas adequadas para fazer surf na ciência arqueológica. Falar a alguém daquilo que sabe e de que gosta é a melhor oferta que se pode fazer. Admirada com o meu comportamento, perguntou-me se tinha interesse pela área. Sorri, e disse-lhe, pela sua e por muitas outras, tenho que lhe confessar que deve ser um privilégio tocar no passado e dar-lhe sentido e significado. Mais um pretexto para referir um ou outro achado, datação e identificação. Sabe, parece-me que quando escavamos a terra, em Portugal, encontramos quase sempre um achado com interesse. Não em todos os sítios, mais no Alentejo. Sim, acredito. Olhe, nas minhas deambulações pelo centro do país também faço uma espécie de arqueologia, não a sua, técnica, científica, mas uma outra, emocional. Certos locais atraem-me e ponho-me a imaginar que, forçosamente, houve gente a viver naqueles locais, tem que ser, é inevitável. De facto, existem elementos que apontam para isso. Sabe, disse-lhe, presumo que não somos muito diferentes dessas pessoas, julgo mesmo que temos a mesma forma de pensar e até de ver o mundo. Claro que, hoje, dispomos de muitos conhecimentos e técnicas, mas em termos estruturais somos os mesmos. Riu-se. Agora era a minha vez de contar algumas das minhas "investigações", melhor dizendo, deambulações. Foquei a zona de Fiais da Telha, Oliveira do Conde, Concelho do Carregal do Sal, bem estudado e cuidado nestes aspetos arqueológicos e culturais. Fiz um pequeno interregno, perguntado-lhe se conhecia o museu deste concelho. Não. Pois olhe que vale a pena ver, porque é uma das mais belas pérolas museológicas que conheço. Agucei-lhe o apetite. Vi perfeitamente que ficou interessada. Passei a relatar-lhe o planalto daquela zona, onde é possível ver quase tudo num ângulo de 360 graus, e onde se pode contemplar belos e intrigantes vestígios arqueológicos. Quando vou até lá é para fazer uma viagem ao passado. Não ouço sons de origem humana, apenas os mesmos que eles ouviam, vejo os recortes das montanhas, a cor do céu e as nuvens como eles viam, sinto a brisa e o calor do sol como eles sentiam, e absorvo os mesmos aromas, quase com toda a certeza. Como vê, também faço a minha pesquisa arqueológica. A conversa continuou ao redor deste tema e de outros que entretanto iam surgindo, fruto de um amplexo pouco típico numa consulta médica. O resto do exame foi quase uma mera formalidade, não fiquei com problemas, e a senhora também não, via-se que era mais do que saudável. Pronto, está apta para trabalhar. Para vender aço, senhor doutor, para vender aço. Saiu da consulta muito admirada e, presumo, satisfeita com a consulta. Eu fiquei.

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