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"Mito de Babel"

Andava na segunda classe quando o padre se lembrou de falar da Torre de Babel, antes tinha contado a história do Dilúvio, uma maravilha que me obrigou a imaginar todos aqueles passageiros, aos pares, no barco. Disse-nos que era a segunda e a última vez que Deus dava oportunidade ao homem de nascer e tornar-se limpo. Não dei grande importância a este pormenor, devia estar para além do meu entendimento, preferia imaginar todos aqueles animais fechados à espera de as águas descerem. Claro que ainda o interroguei para onde foi tanta água, mas fez de conta que não me ouviu, e eu não me importei, já tinha tido outras discussões, o melhor era estar calado. Mais tarde conclui que Noé tinha sido o pai de uma nova humanidade, falhada. O senhor devia meter-se nos copos. O que é que se poderia esperar de quem inventou o vinho? Mas não era só ele, Lot, aquando de um bebedeira, emprenhou as suas filhas, bom, parece que foram estas as responsáveis. Perante estes relatos o futuro da nova humanidade estava traçado. A história da construção da Torre de Babel estava ligado, segundo o senhor prior, ao desejo de o Homem querer alcançar o Céu e pôr-se em pé de igualdade com Deus. Iam construindo andar sobre andar, e eu conseguia imaginar os trabalhadores a assentarem tijolos e a torre a subir, a subir, esperando que chegassem mesmo ao Céu.É desta vez que vou ficar a saber como é Deus, pensei todo feliz da vida, porque, naturalmente, ainda não conhecia o final da história. Já tinha colocado tantos andares uns em cima dos outros e até atravessado as nuvens, quando o padre Rodelas disse: - Deus não achou bem o desejo dos homens em igualá-Lo, uma falta de respeito, por isso fez com que começassem a falar línguas diferentes e não se entendendo não conseguiram continuar com a obra. Fiquei aborrecido porque estava àespera de uma revelação ansiosamente esperada, mas, ao mesmo tempo, comecei a compreender porque é que havia tantas línguas. O meu pai jáme tinha explicado que na Europa, da qual fazíamos parte, havia muitos países que falavam muitos idiomas. Olhei para trás e vi ao fundo na parede o mapa da Europa e o mapa de Portugal, os quais já sabia distinguir e ler. Também já sabia que tinha havido duas grandes guerras em que morreram muitas pessoas e numa delas, na primeira, alguns familiares andaram por aquele inferno. Também me explicou que para evitar futuras guerras a Europa tinha de se unir, transformando-se num grande país, e que já tinham começado esse sonho. Estas conversas ocorreram em 1958.

Mas voltando à catástrofe da Torre de Babel, a qual, segundo Slöterdijk, "descreve a cena primitiva da perda de consenso entre os homens e o início da multiplicidade perversa", podemos afirmar que constitui o ponto de partida da dispersão e multiplicidade da nossa espécie, resultante de um conflito entre o divino e a humanidade unida, ou seja, em termos bíblicos, Deus não quer igualdade entre os homens nem tão pouco que seja poderosa, por isso fez o que fez. Está assim criado o "mito de Babel", numa perspetiva política, em que, ao ser expulso de "um paraíso unitário", impediu, politicamente, de alcançar o consensus. Slöterdijk afirma que "a gente de Babel sabia bem de mais o que deveria e o que queria fazer; o seu projeto de torre foi, segundo tudo aquilo que dele sabemos, uma campanha extremamente corajosa em direção às alturas". Ao ler o seu ensaio, "No Mesmo Barco", podemos concluir que a humanidade estáenferma desde sempre e não há volta a dar-lhe, então, quando o homem ainda se entendia, e podia unir-se em volta de naturais consensus, foi "impedido" de o fazer querem agora que se una à volta de um mesmo projeto? Hum, desconfio que não. Desta feita pode não ser o Deus da Bíblia o culpado, já foi, já, mas isso é outra história, agora, o discreto consenso, que ainda podia ser alcançado, está ameaçado por outro tipo de deus, menos divino e mais terreno, o deus do dinheiro e este não costuma dar segundas hipóteses, é um deus de segunda apanha. Conclusão, depois de tanta prosa e recordações, estamos lixados. Olhei, simbolicamente para trás, para ver os meus velhos mapas da Europa e de Portugal da escola. Gostava de continuar a ter aquela esperança infantil, simples, objetiva e perfeitamente compreensível para uma criança.

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