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Celina das Águas...



O céu cinzento cobria com doçura as águas chãs da ria, entorpecidas por um estranho langor, escondendo a irritação profunda das irmãs para lá do horizonte. As aves abrigavam-se no conforto da proximidade da terra. Brigavam umas com as outras, disputando com particular raiva os pequenos pedaços de pão que uma mulher lhes lançava. Gaivotas transformadas em pombos, gaivotas enraivecidas a relembrar humanos, a natureza com as suas duas mais comuns facetas, a da paz e a da guerra. Uma constante que não se restringe à nossa espécie. Esgotou-se a fonte da disputa. Acalmaram-se. Puseram-se a olhar para as águas, para a terra e para mim com um olhar sobranceiro, destemido, desafiador e, sobretudo, indiferente à minha condição. A mulher aproximou-se com sinais evidentes de arcar com o pior que a vida lhe deu, cifose da vida a preceder a da idade. Balanceava-se lentamente, sinal de desgaste dos quadris. Olhou-me desejosa de explicar algo que nunca lhe pedi. – Foi a senhora ali, e apontou para uma pequena tasca, que me deu pão duro para lançar às gaivotas. – Deviam estar com fome. Disse. – Estão sempre. Comem tudo o que encontram. O tempo está mau e é por isso que elas vêm para aqui. Fogem da tormenta. Tormenta que chega a matá-las. Há dias estava aqui uma, morta. A conversa acelerou-se, e a Celina, de 54 anos, a imitar muito bem as de 74, com um único incisivo negro e delgado na arcada inferior ladeado por restos de outros, rentes à mandíbula, começou a desfiar a sua história, a de muitas irmãs e irmãos, dezassete, foi a única que nunca se casou. Vivia numa casa velha que metia água por tudo o que era sítio e que o último temporal conseguiu alargar os muitos buracos que já tinha. Deixou de pagar a renda. Queixou-se dos irmãos, dos sobrinhos e dos muitos netos que nem vieram ao funeral da mãe, avó e bisavó. A conversa continuou sempre no mesmo registo como se a Celina fosse uma gaivota esfomeada que encontrou no caminho pela marginal um pedaço de pão capaz de  alimentar a sua alma sofredora. A Celina das Águas, assim se chamava a gaivota transformada em mulher, fazia coincidir a sua condição humana, a relembrar uma "viagem ao longo da tarde", com as enigmáticas águas que ouviam em silêncio os nossos diálogos. – Os senhores são de França? – De França! Pensei, mas por que carga de água, a senhora pensaria que éramos de França. – Não, somos de Portugal. Respondi instintivamente ao recordar que estava no Algarve. Em seguida, adiantei, para normalizar o diálogo, de Coimbra. – Ah, muito longe. – Bom, olhe Celina, vamos andando, tudo de bom para si. Os seus olhos, olhos idênticos aos das gaivotas que presenciavam silenciosamente a conversa, mergulharam nas águas chãs da ria, e, balanceando-se como as aves do mar, sumiu-se no horizonte dos humanos, um horizonte curto demais, que não consegue esconder nada, nem a paz, nem a guerra, nem o amor e muito menos a dor.

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