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Desconhecidos...


A melhor maneira de conhecer a natureza humana é saber como somos vistos pelos desconhecidos. Cruzamo-nos com muitos, nunca com outros e, por vezes, roçamos com alguns, tangencialmente, como se fôssemos almas fugidias desejosas de dançar ao sabor do acaso. Seja qual for o tipo de contacto a variabilidade das reações espantam-me, em todos os sentidos, provocando emoções e sentimentos opostos que vão desde a saborosa admiração e confortante reconhecimento ao desprezo e humilhação incompreensíveis, passando pelo analgésico e comovente respeito. É preciso estar atento ou ficar à espera de qualquer notícia, mensagem ou comentário para beber tais bênçãos ou desditas.
Na sexta-feira assustei-me pelo meu atrevimento ao entrar num espaço que parou no tempo, enfeitado com o mesmo mobiliário. Recuei mais de meio século. Outros protagonistas, mesmo ofício. Mesmas palavras e ditos, mesmos comportamentos e tiques. Mesmos hábitos. A velha barbearia encerrava as almas de barbeiros castiços que marcaram uma época, a minha também. O atual, tremelicando, não escondia a velhice, nem podia. Instintivamente entrei e solicitei os seus ofícios. Deixei que percorresse o meu cabelo empunhando a arma que, aparentemente, mostrava indecisão, não sabia por onde ir, para cima, para baixo, para os lados, fechei os olhos e ouvi o tac-tac a fazer das suas. Meti conversa. Num barbeiro temos de fazer conversa, é um imperativo, é o melhor lugar para sabermos certas notícias. Cruzamo-nos há muito, mas, tirando os bons dias e as boas tardes, nunca falámos. Conversámos desta vez. Contou-me a sua vida e perguntou-me pela dos meus. Tem um sorriso encantador e manifesta um sentimento de simpatia sempre que me vê. Sente-se. Não é preciso dizer. Basta sentir, mesmo naquele reduto que deixou de dar importância ao futuro há muito mais de cinquenta anos. Um desconhecido que gosta de respeitar e admirar um conterrâneo. O cabelo não se apercebeu dos tremores da tesoura.
Recordo este episódio porque hoje fui confrontado, violentamente, com uma explosiva escrita biliosa e, porque não dizer, odiosa de alguém que tinha visto na véspera de ir ao barbeiro dos tremores, a quem examinei com todo o respeito e cumprimento das regras que norteiam a minha profissão. Nunca me tinha acontecido nada semelhante. A injustiça assume contornos inesperados e muito dolorosos sobretudo para quem respeita o ser humano. Nem mesmo uma eventual perturbação do quarto andar diminui o efeito devastador de tão inusitadas e injustas afirmações. Um desconhecido que se tornou conhecido e impossível de esquecer, mas que fez doer, e faz doer. Resta-me a consolação das palavras de admiração de alguém que não conheço, mas que vai conhecendo-me. Uma curta e inesperada mensagem a dizer que gosta de me ler, que se tornou um hábito, que lhe faz bem, consegue, conjuntamente, com o respeito idêntico ao manifestado pelo artista da tesoura saltitante, compensar a raiva e o ódio de outros desconhecidos que espero que se tornem de vez. Respeito, admiração e ternura não rimam com injustiça, maldição e loucura...  


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