Quatro e meia da madrugada. Acordei ao cantar de um pássaro. Cantava muito afinado. Parecia um ator de ópera. Um canto complexo, alegre, às vezes trinava. Pus-me a ouvi-lo com atenção. O sono desapareceu. Uma melodia muito estranha. Não é a primeira vez que os ouço. Há um que no final de fevereiro aparece com a sua conhecida cantadoria. Quando ouço, ainda as andorinhas não chegaram, descubro o primeiro sinal da primavera. Todos os anos é a mesma coisa. Por vezes tarda e fico preocupado. Julgo que terá desaparecido, mas não. O seu cantar tranquiliza-me e abre as portas de mais um ano. O começo do meu ano é marcado pelo seu cantar. Mas hoje o cantar era diferente, muito diferente e excecionalmente belo. Tão belo que nunca tinha ouvido. Durante algum tempo, mais de uma hora e um quarto, nunca se calou e nem se cansou, bem pelo contrário. Pareceu-me que emanava felicidade. Subitamente calou-se, talvez em respeito ao momento ou ao aparecimento do primeiro raio do dia, quando a deusa Aurora surge fresca e bela com os seus cabelos doirados ao sabor do vento, filho do bocejar do sol. Não sei se teve inveja da deusa ou se calou ao recordar que àquela hora os carrascos acordaram John Fisher para a decapitação. O santo, homem notável, uma das mais brilhantes almas que passou por este mundo, acordou e pediu aos carrascos que lhe concedessem mais uma hora. Queria descansar. Estava com muito sono. Imagino a surpresa. Foi-lhe concedido esse desejo. Dormiu profundamente durante uma hora, finda a qual foi decapitado. Aconteceu a esta hora da madrugada deste dia. Não sei se o tenor de asas sabe ou não a história que acabo de contar. Quero acreditar que sim. Depois fez-se silêncio. Eu pensei no momento e adormeci sem saber durante mais uma hora. Entrementes, lembrei-me dele e de Thomas More, que passadas duas semanas seguiu o mesmo destino. Mentes brilhantes, impolutas, honestas e honradas que me marcaram e continuam a marcar. São os meus dois santos de devoção, não por terem feito qualquer milagre, mas por representarem aquilo que gostava de ser. Não é fácil. Eu sei. Mesmo assim acasalei o meu pensamento com a beleza e a dignidade do pássaro cantor.
Ao final da tarde informaram-me que o meu casal de mandarins tinha fugido. Fiquei branco de tristeza. Cuidei tão bem deles. Que diga o "Manuel Trump". Chegou doente, depenado e condenado. Transformou-se numa bela e alegre ave. Agora não vou ouvi-los de manhã. Eu sei que são livres. Talvez por isso fizeram algo de invulgar. À hora de jantar, através da janela, vi a fêmea, branca como a neve, a ser seguida pelo "Trump". Voavam com facilidade e até com felicidade. Por duas vezes "mostraram-se". Uma coincidência? Uma despedida? Um sinal de que estavam bem e que iriam vencer as dificuldades da vida? Espero bem que sim.
Hoje, foi um dia em que imperaram as aves. Liberdade, felicidade e beleza fizeram o resto.