"Pulguita"...

A semana não foi simpática. Um pouco dura para quem quer viver em paz. Não é fácil viver e muito menos sonhar. Quase impossível. Salvam-se alguns momentos de silêncio ou de reflexão. Momentos que não sendo doces sempre vão dando algum alento e esperança até surgir a fúria do tempo.
Momento? Sim. O momento é o filho perdido do tempo. Cansado de peregrinar no céu do tormento e nas águas do lamento, surge sem avisar como a querer adormecer no meio da mais estranha fantasia, a humana alegria que, subitamente, cai de podre da árvore do encantamento.
Tudo acontece sem previsão, ou talvez não. Mais vale acreditar numa efémera ilusão do que na realidade fria e crua de quem não sabe o valor de uma oração.
Tudo gira sem explicação. Tudo morre como resposta à mais singela inspiração. Tudo finge sem se preocupar com a razão. Não interessa viver. O que importa é esquecer e mergulhar no meio da mais singela emoção. Só as coisas simples são capazes de ajudar a viver e ultrapassar por breves instantes a morte em vida de quem nem compreende o significado da criação. Talvez sejam lágrimas dos sentimentos. Sentimentos que sempre se julgaram livres. Livres? Não. São apenas escravos das mentes e, eternamente, desejosos da libertação...
- Senhor doutor, senhor doutor! O chamamento troou nas Lajes. Também não incomodou praticamente ninguém. Cada vez há menos pessoas no bairro. Uma imagem em espelho do que ocorre no interior do país.
- Diga Maria. A sua voz é inigualável. Já sabia ao que vinha.
- Tenho aqui a sua gatita. Nos braços adivinhava-se facilmente uma bolinha doce e suave de um pelo escuro. Pus-me a pensar: - Só me faltava esta. Eu que não sou apreciador destes tipos de animais, oriundos do próximo oriente e do antigo Egito, há quem afirme que ainda não estão verdadeiramente domesticados, acabei por ser adotado. Cão, pássaros, entre os quais andorinhas e pardais, caem nas minhas mãos. Agora uma gata! Mas que hei de fazer? Nada ou muito.
- Traga cá o animal. Mortinho por o ver, desci as escadas. O animal é mesmo lindo, meigo, delicado, limpo e comporta-se como um cãozinho.
- Já fui com ela à veterinária, Foi desparasitada. Tenho ali as contas todas.
- Deixe-se disso. Quanto é que gastou?
- Ainda tenho quatro euros.
- Ainda?
- Sim.
- Quando precisar é só dizer, ouviu? Quero que tenha as vacinas em dia.
- Ó senhor doutor. Pode estar descansado. A médica disse que aos seis meses pode ser esterilizada.
- Força. Entretanto, o animal deixava-se acariciar e brincava com muita doçura. A gatinha, muito limpa, é um encanto. Dizer que um gato é um encanto até me surpreende. Ficámos a conversar durante algum tempo. A Maria sugeriu-me que aos seis meses, depois da esterilização, já a podia levar.
- Ó Maria! E o cão? O Pipoca.
- Eu também tenho cão e ele dá-se muito bem com os meus gatos.
- Pois! Pensei. Estou bem arranjado. Se continuar nesta senda nem sei como vou acabar.
- Ó Maria. Depois logo se vê. De qualquer maneira aos fins de semana é a nossa gata.
- Aos fins de semana e durante a semana! O senhor doutor é que é o dono. Pode estar descansado.
- Eu sei. Eu sei. Mais duas festas, que a gatita docilmente retribuiu, e vim para a varanda, na noite de São João, a pensar nos "meus" animais. No fundo, viver é isto mesmo, partilhar sentimentos escravizados pelo tempo e libertá-los de forma simples através de pequenos gestos...

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