Morte...

Tive sempre um fascínio pela morte. Algumas recordações possibilitam-me afirmar que sou capaz de a definir como a vi pela primeira vez. Uma ladra. Ao acordar ouvi uma conversa. A minha mãe falava com a vizinha na cozinha. Falavam da morte da menina. Era a minha companhia. Adoeceu com a mesma doença que eu tive. Ela morreu. Fiquei a pensar: - Se morreu nunca mais vamos brincar. Eu gostava muito de estar com ela. Tinha a minha idade. Já tinha visto gatos, cães, pássaros, e até  uma cobra, mortos. Não se mexiam e ficavam feios. Comecei a pensar como seria o aspeto dela. Levantei-me e perguntei se podia ir vê-la. Ficou indecisa, mas depressa se recompôs e disse: - Podes. Como tiveste a mesma doença, agora já não corres risco de voltar a adoecer. - Vamos? Disse-lhe. - Espera um pouco. Ainda devem estar a prepará-la. - A prepará-la? O que é isso? Perguntei meio confuso. - Devem estar a lavá-la e depois têm que a vestir. - Mas os mortos também tomam banho? Para quê? Olhou-me e não disse nada. Fomos. Entrei no quarto e vi-a deitada na cama. Estava vestida de branco, mas a pele não era branca e rosada. Estava amarela. No pescoço via-se um pequeno orifício como se tivesse uma crosta à espera de crescer. Não gostei. Toquei-lhe na mão e senti um frio. Quando lhe dava a mão nas nossas brincadeiras sentia um calor idêntico ao meu. Não se mexia. Os olhos estavam fechados. Não se mexia. Andavam todos numa azáfama com os preparativos. Fui buscar a boneca que mexia os olhos e coloquei-a nas mãos que estavam cruzadas e com um rosário. Nunca lhe tinha visto um rosário. Fiquei a pensar para que serviria aquilo. Ficou muito melhor com a boneca nas mãos. Deitei-me a seu lado por breves instantes. Ninguém disse nada. Nem sei se repararam. Mas devem ter visto. Passados alguns minutos a minha mãe levou-me para casa. Perguntei-lhe se podia voltar a vê-la. - Podes, pois. Amanhã. - Amanhã? - Sim. No dia seguinte estava na sala enfiada numa urna branca. Igual ao dia anterior. Não se mexia. Não falava. Não se metia comigo. Não se ria. Só aquela maldita crosta no pescoço é que me incomodava. Feia. Disse isso à minha mãe. Passado um pouco colocaram-lhe um lenço de seda branca a tapar o colo. Ficou mais bonita, mas nada que se comparava quando andávamos nas nossas constantes brincadeiras. Depois foi o funeral, a maldita carreta negra com arabescos prateados, a irmandade vestida de negra, as bandeiras, a tenebrosa matraca, que ainda hoje me martiriza com o seu som sem sentido e ofensivo. Dia quente. Fui atrás durante todo o percurso. De quando em vez o cortejo parava e o padre punha-se numa ladainha a que eu não ligava nenhuma. O caixão branco em cima da carreta negra e o sol doirado num fundo azul compunham toda a cena. Entrei pela primeira vez no cemitério. Não me incomodou minimamente. Vi a cova aberta e o caixão a descer de lado. Começaram a lançar nacos de terra para cima dela. Fiquei irritado. Estavam a sujá-la. Pelos olhares dos que estavam a lançar terra e flores entendi que deveria ser algo importante. Não sabia. Então, apanhei um pedaço de terra, e em vez de o lançar como se fosse uma pedra, como os outros faziam, espremi-o deixando cair os grãos de terra como se fossem gotas de lágrimas no canto onde ainda conseguia ver-se um pouco de branco... 
Ainda hoje sonho com as brincadeiras que a morte interrompeu...

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