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A boneca

Uma reunião de trabalho ao final da manhã levou-me a alterar as rotinas. Aproveitei as duas horas a mais, num dia a menos, para ler os jornais.
Toca a campainha. Àquela hora só podia ser o neto do meio que vinha passar o dia com a avó. Abro a porta e deparo-me com o menino, cada vez mais lindo, de mão dada com a mãe, transportando com a esquerda um cestinho com laços azuis, que, em tempos, foi utilizado para as suas "coisinhas" de bebé. Dentro do cesto dois bonecos. Transportava-os com cuidado. Depois dos cumprimentos, perguntei-lhe como é que se chamavam.
- Este é o Francisco e esta é a Joana Francisca.
- Muito bem. E que idades é que eles têm?
- O Francisco tem dois anos e a Joana dois meses.
- Ah, pois! A Joana é mais pequenina. Gostas deles?
- Gosto. E, de uma forma muito doce para o que é habitual, deitou-os e cobriu-os com uma ternura que me tocou. Depois, conversámos um pouco e soube que tinha matado os monstros, todos. Gosta de brincar com alguns jogos computadorizados, que muitos consideram como violentos, assim como outras práticas reveladoras da existência de níveis de testosterona, que, embora baixos, são mais do que suficientes para exteriorizar a agressividade típica dos machos. Nada que me incomode, porque a agressividade é desejável e passível de "domesticação", o que só se pode fazer caso se manifeste, como é óbvio.
Surpreendeu-me o seu ato, um desvelo que já me tinham contado, porque o safado é mesmo um traquina.
Considero muito agradável o comportamento do miúdo, coisa que não acontecia noutros tempos, em que brincar com bonecas era visto como sinal de mariquice e objeto de gozo por parte de outras crianças e, até, adultos. Ainda hoje é possível observar esta disfuncionalidade mental.
Ao olhar para os "manos", lembrei-me de uma boneca de uma amiga minha com quem brincava em pequeno. Tinha lindos cabelos louros. Os olhos abriam e fechavam quando mudava de posição, revelando, em pé, duas lindas pupilas azuis que brilhavam como se tivesse vida. O vestido, de cor-de-rosa, ornado com rendas, fazia sobressair o olhar azul e os lábios sorridentes. Não gostava muito da cor, faltava-lhe sangue para avermelhar a pele "amarelada". Mesmo assim, encantava-me. Pedia-lhe para que me deixasse pegar-lhe. Ela deixava e ria-se. Eu levantava-a e deitava-a vezes sem conta para vê-la a abrir e a fechar os olhos. Nunca tinha visto nada assim. - Como é que ela faz isto? Perguntava, silenciosamente. Sempre que ia a sua casa, brincava com a "loura de olhos azuis", mas às escondidas, porque diziam que os meninos não brincam com bonecas. Maricas! "Menina"! Eram alguns mimos, entre outros.
Um dia, a doença má atacou a localidade. Alguns meninos morreram. Eu adoeci e a minha amiga também. Eu adoeci primeiro. Ela adoeceu quando eu já estava bem. Ela morreu. Tínhamos cinco anos. Levaram-me a sua casa. Estava deitada com olhos fechados, vestida como uma boneca. Aos pés da cama estava deitada, também, com os olhos fechados, a "loura de olhos azuis". Olhei para as duas e vi que a cor da pele era muito parecida, amarela, sem sangue a correr para dar cor. Toquei-lhe, a pele não tinha o calor dos dias de brincadeira, estava fria. Ainda pensei em levantá-la para ver se abria os olhos como a boneca, mas tiraram-me do quarto, dizendo que já chegava. Saí. No dia seguinte voltei e fui atrás dela. A carreta negra, com dourados muito feios, transportava a pequena urna branca. À frente, a irmandade, vestida de negro, com bandeiras estranhas, assustou-me, mas mais assustado fiquei com o som da matraca. Um som que perdura e que nunca esqueci. Só se calou no cemitério. Foi a primeira vez que entrei naquele espaço e vi colocar a urna na cova que me pareceu muito funda e escura. Olhei para o fundo. O sol deixou de iluminar o branco. Uma sombra fria cobriu a urna e fiquei a pensar se a boneca loura de olhos azuis estaria a fazer-lhe companhia. Nunca mais vi a minha amiga e a sua boneca.
Agora, ao meu lado estão os "manos" dentro do cesto. O meu neto foi brincar durante a tarde e, como não voltou a casa, não os levou, mas telefonou à avó para que tomasse conta dos seus "filhos".
- Tomas conta dos meus filhos, vovó?
- Tomo, está descansado.
- Amanhã, levo-os.
- Está bem.



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