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Uvas de prata...



À tarde fomos até à cidade velha. O calor seco apertava connosco e até o camelo, de joelhos dobrados junto à porta de Jaffa, com um olhar muito triste, deveria estar arrependido de ter nascido sob aquela condição. Convidaram-me a levar um saco de plástico repleto de suculentas e túrgidas uvas, as quais prometiam matar a sede e a alimentar o esforço dos músculos. Assim foi. Sempre que o corpo exigia um pequeno reparo bastava brincar com o suco libertado em pequenas explosões dentro da boca. A doce frescura tranquilizava-me rapidamente com um prazer único, desafiando o calor da cidade das três religiões. Estranhas sensações iam-me invadido à medida que auscultava a salada religiosa traduzida no vestir, no olhar, no comer e no orar. Passei por fronteiras religiosas dentro de um estado soberano, o que me constrangeu sobremaneira. A ortodoxia de marrar com a cabeça num muro cheio de mensagens para um deus faccioso, contrastava com a limpeza e o silêncio da mesquita dourada em que não há roubos, apesar dos muitos ladrões temerosos a outro deus e, por fim, como uma cereja em cima do bolo, embora um pouco podre, pude comprovar a estranha sujidade e desorganização num lugar retalhado pertencente a seitas pouco amistosas do deus dos cristãos. Três espaços, três cinturas, três colorações demasiado perto uns dos outros, sem terra de paz entre eles, representando três deuses, de costas viradas, ciumentos, à espreita de se esfaquearem uns aos outros. O prazer das pequenas explosões das uvas dentro da boca permitiam ultrapassar todas as reflexões que ia fazendo. À noite, o calor substituiu o vermelho do céu e o dourado da terra. Os sons dos violinos enchiam as ruas como se fossem anjos sem deus, anjos livres de qualquer ditadura divina. O vendedor olhou-me com malícia ou com a certeza de ir fazer um bom negócio, os seus genes, apurados por uma rigorosa seleção religiosa, viam bem o que estava para acontecer. - Gosta? - Sim. É uma peça maravilhosa, um lindo vaso, elegante. - Sim, prata e vidro de Jerusalém. - Caro! Riu-se. -Sim. Olhe para o dinheiro e veja se consegue tirar o mesmo prazer. -Não, claro. A conversa continuou ao jeito muito típico de quem nasceu e há de morrer a fazer negócio aprendido com os seus antepassados ao longo de milénios. - Tome. -Não posso, é dispendioso. Disse com sentida tristeza. - Está bem. Tome na mesma. Vou baixar-lhe o preço, porque como conhecemos a mesma pessoa, e já que fui amigo dela, em sua homenagem vai levá-la. De facto, naquele misterioso linguajar, quem é, de onde veio, faz o quê, acabámos por saber que conhecíamos uma pessoa, o que era matematicamente quase impossível para quem vivia a milhares de quilómetros um do outro. Coincidências da vida ou prémio de deuses diferentes. Não importa as razões. Um lindo vaso de vidro a relembrar a imagem de Júpiter orlado no bucal com delicados cachos de uvas de prata caiu-me nas mãos, enchendo-me de prazer. Leve, suave, encantador e inspirador de emoções, a que não é estranho o belo planeta que entra pela janela da minha sala no seu passeio noturno, um deus que não partilha espaços, nem luta pelas suas verdades, um deus que já foi deus e que deixou de ter seguidores. Um deus livre, suave, encantador e inspirador de emoções e de uvas túrgidas que, ao explodirem dentro da boca, provocam uma inebriante volúpia. Olho para Júpiter e vejo o seu reflexo na beleza e cor do vidro de Jerusalém. Só agora entendi a beleza do vidro e a doce frescura das suculentas uvas...

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