O outro Algarve...





Domingo. Excecionalmente um dia de trabalho, trabalho diferente, mas nem por isso deixou de ser trabalho. Fiz o que me competia, moderei, interpelei, sintetizei e saímos da sala convictos de que é possível mudar as coisas. Claro que é possível, só que leva tempo, tempo de mais, havendo necessidade de continuar neste intercâmbio entre a ciência e a política. Desta feita convidaram deputados e representantes de associações de doentes para fazerem parte da mesa-redonda. Ainda bem, há muito que ando a dizer que só assim a ciência e os conhecimentos podem atingir quem tem vocação e capacidade para decidir. 
Como ganhei o dia, dei-me ao "luxo" de tirar a tarde para mim. Almocei e dei uma pequena volta sempre empurrado por um vento furioso. As ruas, limpas, eram salpicadas, de quando em vez, por turistas excitados pelo sol e alheios ao desconforto do vento. Há gostos para tudo. Junto a uma montra, um tabuleiro com anéis e colares artesanais quase que escondiam uma dezena de pequenos óleos, representando quadros das paisagens urbana e rural algarvias. Senti alguém a aproximar-se, discretamente, como que a querer esclarecer qualquer coisa, mas sem se intrometer. Deveria ter pouco mais de quarenta anos, seco de carnes, olhar brilhante, oferecendo um discreto sorriso em que imperava algo semelhante a humildade. Fiz de conta que me ia afastar para ver outras coisas na montra, mas, logo de seguida, voltei a minha atenção para os quadros. O senhor apercebeu-se do meu interesse, e, muito respeitosamente, numa voz baixa a fugir para a timidez, disse: - Foi eu que os fiz. - Sim? São interessantes. Vê-se que é um autodidata. - Sim, sou. Como viu o meu olhar a focar incessantemente um deles, adiantou: - É a torre do Arco da Vila de Faro. - Ah, bem me parecia. Lembro-me de a ter visto há anos. O que me chamou a atenção foi a cegonha. Riu-se. Na parte inferior do quadro estava o seu nome, Amilio M. - O senhor chama-se Amilio? Era a primeira vez que lia este nome. - Não senhor, não me chamo Amilio. Pensei que o seu pai se tinha enganado e trocado o nome. Naquelas alturas os erros de registo eram comuns, por vários motivos, entre os quais a hora dos mesmos e a dose de tinto que alguns funcionários já tinham emborcado. - Não senhor, o meu nome é Humberto. - Humberto? Então porque é que escreve Amilio? - Olhe eu não consigo escrever o meu nome nos quadros, não sei porquê, mas não consigo. Já tentei, mas não consigo. Optei por Amilio, um nome artístico. - E porquê Amilio? Olhei para a sua face e vi algum incómodo ou indecisão perante a minha pergunta. Com um sorriso humilde disse em voz baixa: - Coisas complicadas, histórias, histórias. Estive em França muitos anos. Como vi algum desconforto, não insisti e mudei de assunto. - O senhor de onde é? Sou algarvio, de Moncarapacho. - Mon...quê? - Moncarapacho. Um aldeia entre Loulé e Faro. - Ah, então o M. é de Moncarapacho? - Sim! Confessou  um pouco surpreendido por ter descoberto o significado da sigla da assinatura.
- Olhe meu caro, vou levá-lo. Foi então que vi a estupefacção misturada com manifesta alegria. Olhei mais uma vez para o quadro com a torre e a cegonha e meti-me no carro. Rumei até Faro. Ao chegar ao Arco da Vila, vi que a cegonha estava lá, a mesma que devo ter visto há uns anos. Dei uma volta e visitei o museu de Faro. O senhor recusou-me o pagamento, porque faltava meia-hora para fechar, mas tranquilizou-me, esteja à vontade. Vi um belo convento e apreciei obras de uma beleza extraordinária. As funcionárias abriram algumas salas, que já estavam fechadas, com uma simpatia difícil de descrever. O domingo quis mostrar-me outras gentes e outras almas. Acabei por ver e sentir humildade, arte, delicadeza e encantadores sorrisos. Um perfeito contraste com o Algarve da véspera. 
Não podia deixar de o descrever. Seria uma perfeita injustiça...

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