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Dionísio

Por causa de um Dionísio lembrei-me de um outro, mais simpático e mais humano.
Lembrei-me de um texto que escrevi em 23 de abril de 2014

Dionísio
Gosto de revisitar o passado apenas para saborear sentimentos, paixões, devoções e emoções. Não preciso de muito e nem é muito complicado. É tão simples. Uma pequena ideia, uma imagem, um som, um aroma, uma lembrança e tudo se transforma, e eu embebedo-me como se fosse o Dionísio da Quinta do Rio. O Dionísio existiu, foi um barbeiro, cortou-me muitas vezes o cabelo, e brincava com os piolhos que dormiam no meio dos cabelos que sabia cortar à maneira. Nunca se preocupou com eles e as lêndeas deveriam ser fonte de inspiração. Piolhos para o Dionísio eram a coisa mais natural do mundo, tão natural como beber um copo de três a meio da manhã. O Dionísio não conseguia mexer bem o pescoço e com o tempo ficou tão rígido que sempre que queria olhar tinha de virar o corpo. Cortava o cabelo, bebia o seu tinto em tesouradas constantes ao longo do dia e marchava de noite, tocado pelo seu homónimo, ao longo da linha estreita até à Quinta do Rio onde vivia. Eu gostava do Dionísio, que nunca se enojou com os meus piolhos. Não sei se era eu que lhe oferecia ou se era ele que os emprestava. Estoirava-os entre duas tesouradas, empurrava-os para o meu regaço e lançava-os ao chão, pisando-os. E a conversa continuava sem se importar com a presença dos animais. Piolhos para o Dionísio eram a mesma coisa que os bichos das couves, natural, sem nenhuma importância. No final do corte sacaneava-me aspergindo o álcool no pescoço. Era a altura de dar um pulo de corça. Porra. Este gajo é doido com o álcool, prefiro de longe a comichão dos piolhos. Ele ria-se. O Dionísio era miudinho, fraco de carnes e simpático até meter o dedo na goela para saber se ainda havia lugar para mais um copo.
Depois o tempo afasta-nos, mas não muito, acabamos por nos rever quando menos esperamos. Foi o que aconteceu um dia numa fazenda, estava o Dionísio a comer de um pequeno tacho sentado num tronco e com a garrafa de vinho ao lado. Respeitou-me e só depois de o ter cumprimentado é que disse boa-tarde e perguntou se era servido. Respondi que não. O pescoço estava tão rígido que não foi capaz de rodar um milímetro que fosse. O sorriso era o mesmo quando se divertia com os piolhos em pequeno. Fiquei incomodado, andava na jorna, já não cortava cabelos. Não foi preciso falar. Senti que tinha acontecido algo. O Dionísio era um artista de cabelos e não propriamente um trabalhador rural. Não é que tivesse dificuldade em amanhar a terra, mas a sua excelência estava na tesoura, nos comentários e na sabedoria da escola da velha barbearia. Fiquei incomodado com a desvalorização feita ao Dionísio, que nunca teve mais de um metro e meio da altura e nunca soube o que eram cinquenta quilos mal-amanhados. Sabia beber, embora nunca o tivesse visto bêbado. Dizem que os cortes eram mais requintados ao fim da tarde ou ao princípio da noite quando se deslocava na escuridão para a negrura da sua casa.
Um dia informaram-me que tinha tido um acidente de viação com a motorizada. Uma modernice qualquer que tinha adquirido e que acabou por lhe provocar a morte. Disseram-me onde foi o local do desastre. Foi há muito tempo. Hoje recordei-me do Dionísio. Gostava dele. Cortava-me o cabelo em miúdo e matava os piolhos como só ele sabia. Para ele piolhos eram a coisa mais natural do mundo. Ainda me ofereceu um pente para os piolhos, amarelo. – Toma. É para os apanhares. Mais tarde soerguia-se ou fazia de conta que se abaixava para me cumprimentar o mais respeitosamente possível dizendo, senhor doutor! E ria-se com o mesmo sorriso, o sorriso do Dionísio.
Hoje, bebi um copo à memória do Dionísio."

Hoje, também vou beber mais um.
Sabe bem.

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