Nélson

Na semana passada gozei alguns minutos de descanso no jardim. Sentei-me num banco e deixei escorrer o meu pensamento ao longo das margens ornadas de canteiros de flores sob um sol delicioso de outono. Volta e não volta uma folha dourada caía a meus pés ou sentava-se a meu lado, enquanto duas delas se lembraram de me acariciar com o beijo do descanso da vida que o inverno oferece com deleite a muitas árvores. Deixei-me ir em silêncio e sem pensar na onda lenta mas absoluta do outono. Subitamente, um casal de idade chamou-me a atenção. Ela não, mas o senhor tinha um andar típico que eu conheço desde há muito. Com um ar desengonçado, livre de preconceitos e, até, provocador, apesar de andar agarrado a uma bengala - às tantas mero fingimento -, chamou-me a atenção o boné às riscas, com muito vermelho e preto, o casaco amarelo forte, demasiado grande para o seu corpo mediano, as calças de ganga, não daquelas que as meninas de hoje usam, artificialmente rotas, mas com duas bandas largas de adesivo branco num perfeito xis na coxa direita e o ondular de fios longos e muito brancos que se escapavam à opressão do boné que o deveria proteger do sol deste tempo. Tudo conjugado culminou num nome, o Nélson. Um velho amigo que só vi duas vezes em adulto, hoje foi a terceira, depois de longos anos de separação.
O Nélson era o responsável pela biblioteca itinerante da Calouste Gulbenkian. De tempos a tempos, julgo que era de quinze em quinze dias, aparecia na vila vindo dos lados de Mortágua, onde morava, a conduzir a Citroen. Parava junto do parque, perto da igreja, onde eu já estava há muito tempo à espera. Começou a meter-se comigo logo no início. Deve ter achado muita piada porque, por vezes, escolhia livros que, na sua opinião, não eram propriamente para a minha idade. Ouvia-o atentamente e aceitava uma ou outra sugestão, mas levava sempre avante a minha. - Tu vais ler isto? - Vou! - Mas para quê? Porque razão não levas um livro de aventuras? - Mas eu levo. Estás a ver este? É o Ivanhoe, ou, então, é o Robin dos Bosques. - Está bem, mas o outro? - O outro é para aprender. Ficava de olho atento e não me deixava levar mais do que estava estipulado, o que eu considerava ser injusto, porque ao fim de alguns dias já não tinha nada para ler. Ao princípio foi assim, depois, com o tempo, abriu uma exceção e eu levava muitos mais, sem que ninguém desse conta. - Não digas que levas mais do que é permitido, ouviste? - Sim, podes estar descansado. Gostava que o tratassem por tu. Naquele tempo era uma heresia. Mais tarde, soube que não tinha possibilidades para continuar a estudar. Sugeriu à minha mãe, e depois ao meu pai, que escrevesse uma carta ao escritor Branquinho da Fonseca, então diretor e fundador das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, também ele natural de Mortágua, para ver se me arranjava uma bolsa de estudo. Ele próprio se encarregou disso, levando a carta e encarregando-se de interceder pessoalmente pela minha pessoa. Foi assim que consegui a bolsa até me licenciar em medicina. Mais tarde cruzámo-nos, já era há muito tempo professor catedrático. - Sabes, tenho acompanhado a tua carreira. Fiquei de boca aberta. - E nunca me esqueci dos livros que levavas, do atrevimento nas escolha que fazias e da discussão sobre eles. Sorri. - Fizeste bem! Disse-me. Eu, que conhecia a história, ripostei: - És um gajo porreiro, ó Nelson. - Ó pá, deixa-te disso!
Hoje, sentei-me no mesmo banco, à mesma hora, sob o mesmo sol e lembrei-me dele.

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