Olhar para a face de uma pessoa permite indagar em silêncio o que corre numa alma atormentada, e quando os olhos nos fixam podemos entrar dentro dela e sentir a dor e o desespero. Baixo os olhos perante este despir, por respeito e por medo. Inquieta-me conhecer o sofrimento dos outros, sabendo que muito pouco ou nada possa fazer ou oferecer.
Tudo decorreu dentro das normas, embora sentisse o peso de uma enorme dor. O silêncio começou a perturbar. Perguntei-lhe pela saúde dos familiares. Confessou que tinha perdido a mãe há poucos dias. Bate certo, pensei. Sofre. Perguntei-lhe que idade tinha a mãe. Sessenta anos. - Qual foi a causa? Explicou-me em breves palavras. Não comentei. Passei para as perguntas subsequentes e continuei na minha tarefa. Ao terminar, começou a descrever as suas vivências e emoções. Larguei tudo e deixei que se expressasse livremente. Fiquei muito ansioso e, ao mesmo tempo, perturbado. De uma forma transparente, limpa, quase que diria literária, expôs tantas coisas que eu nunca ouvi a ninguém. Não a conhecia. Contou-me que "soube" que a mãe iria morrer naquele dia. Esteve sempre lúcida, e sabia, desde há algum tempo, que ia morrer. Descreveu episódios tão íntimos que nunca pensei ouvir, como aquele em se deitou a seu lado e começou a largar lágrimas. A mãe nunca chorou perante as filhas. Limpou-lhe as lágrimas e pediu-lhe que abrisse os olhos, porque gostava de os ver e de os sentir. Acalmou-a. Noutro momento, com a irmã presente, pediu-lhes que fossem amigas e que se protegessem uma à outra com o mesmo amor que sempre tivera por elas. As descrições das suas emoções adquiriam cores estranhas e muito vivas. Eu conseguia ver os diversos quadros com os silêncios, as dores e, até, sorrisos de quem sabe que vai morrer e pede aos seus que vivam com amor, confiança e respeito por si próprios. Não sei quanto tempo durou esta conversa. São momentos em que o tempo, envergonhado, desaparece, e dá-nos a liberdade que tanto desejamos, mesmo que estejamos a falar da morte de alguém, que soube tão dignamente libertar-se da vida.
Agradeci-lhe o facto de ter partilhado a sua história de uma forma tão íntima. Sorriu. - Eu é que lhe agradeço a forma como me ouviu. Abraçou-me e saiu.
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